domingo, 27 de abril de 2008

Contos de fada e a violência atual (Luís Carlos Lopes)

Existe quem acredite que a violência é uma característica intrínseca da espécie humana. Há duas abordagens para este fenômeno: a histórica que percebe que a violência é praticada dentro dos contextos que a envolve e, de algum modo, permitem seu desenvolvimento; a não-histórica e tradicionalista, pensando o ato de violência como algo que se refere única e exclusivamente à ação individual.

Na primeira, aqui esposada, busca-se entender o crime no lugar social onde ele foi praticado. Ele, com toda a sua rudeza, ajudaria a compreender melhor a sociedade onde teria ocorrido. A coleta de dados histórico-sociais sobre os seus autores ajudaria a elucidá-lo como também a evitá-lo em outras situações próximas e possíveis.

Na segunda, prevalece a condenação moral. Esta pode ser ou não justa. Nela, é recorrente o baixo nível de compreensão objetiva do problema. Em nenhuma das duas abordagens se diminuem a responsabilidade dos seus autores, sobretudo, quando fica provado que eles teriam meios de evitar a barbaridade de seus atos.

Se a violência extrema é uma velha característica da espécie humana, não se pode esquecer que a bondade também o é. A mão que mata também acaricia ou segura o desejo de alguém se desforrar de outrem. A violência sempre foi muito maior, quando praticada como instrumento de poder de elites sobre maiorias, de governantes sobre governados. A violência de indivíduos, principalmente, quando feita contra pessoas indefesas relaciona-se a algum tipo de iniqüidade social que animaliza, tanto o autor como a vítima.

Na época da escravidão, mulheres coisificadas executavam seus rebentos para diminuir suas cargas pesadas de trabalho servil. A inexistência do aborto legal deve explicar inúmeros casos de violências contemporâneas, que envolvem adultos e crianças. A irresponsabilidade social da paternidade e da maternidade, ainda vista por alguns como sagrada, seria outro vetor a ser considerado.

O crime comum esteve sempre relacionado ao tipo de sociedade onde ele viceja. Quando ele ocorre, seria bom que se verificasse porque foi possível. Quem não é hipócrita, sabe que a miséria é a mãe da maioria dos atos criminosos. Não é casual que a maioria dos aprisionados sejam oriundos dos setores mais pobres do tecido social. Beneficia-se disso quem comete crimes e não é pobre, porque os sensos comuns de setores importantes do Estado e da sociedade têm mais dificuldade, ou fingem ter, de compreender o envolvimento dos não-miseráveis.

Em uma sociedade construída a partir de inúmeros preconceitos e desigualdades, freqüentemente, imagina-se que a cadeia seja lugar apenas para os de baixo da pirâmide social. Isto costuma gerar a revolta dos mais pobres, que, com imensa razão, gostariam que a justiça fosse realmente para todos.

A ignorância é outra matriz da barbaridade criminosa. De há muito, a ignorância não é sinônimo estrito da falta de escolaridade. O monstro da ignorância é irmão siamês do monstro do consumo. Não saber é um pré-requisito de integração em alguns meios sociais que repelem a ciência e a arte, alimentando-se, mesmo quando não lhes falta dinheiro, do que há de pior na cultura das mídias.

Estar sintonizado, nos meios e aparelhos que permitem a comunicação atual, não garante o sonho acordado necessário ao progresso intelectual e moral de qualquer pessoa. A arte a ser consumida não precisa ser a das elites, mas tem que ter alguma qualidade, sendo capaz de humanizar seus usuários. A ciência conhecida não necessita ser a dos especialistas, basta que se saiba o essencial do saber contemporâneo. Os meios e aparelhos citados podem ser usados no sentido positivo e negativo.

Em um exemplo, da difusão da ignorância, as grandes mídias usaram, nos últimos dias, abusivamente da palavra ‘madrasta’ de clara conotação preconceituosa. Pareciam estar lembrando dos contos de fada compilados pelos Irmãos Grimm, na primeira metade do século XIX. Neles, fortemente inspirados na cultura oral européia, alguma mulher seria responsável pelo incrível sofrimento de personagens como a Branca de Neve e os pequenos João e Maria. Tal procedimento ofendeu a milhares de famílias reconstituídas que, aliás, tratam muito bem dos seus filhos, por vezes, melhor do que as anteriores. Isto deslocou a discussão do seu verdadeiro eixo.

Por que pessoas podem ser tão brutais e agirem contra a humanidade dentro de suas próprias casas? O que isto teria a ver com o vazio cultural e político do nosso tempo? Por que a noção conservadora dos laços familiares seria ainda tão forte e estimularia a barbárie? O que fazer para impedir outros casos?

domingo, 20 de abril de 2008

O Juiz, a Polícia e o Malandro (Roberto Schuman)

Segunda-feira de carnaval, saio de casa perto das 22:00 horas para encontrar a namorada na porta do Circo Voador, na Lapa. Lá chegando, saio do táxi falando ao celular para encontrá-la. Mas não é só. Além de tênis, bermuda e camisa, usava um chapéu, desses vendidos em todos os cantos da cidade a R$ 5,00. Presente da namorada. Coisa de mulher.

Então, atravesso a rua e quase sou atropelado por um camburão com luzes e lanternas apagadas com a inscrição CORE no carro. No mesmo momento o motorista grita "Ô malandro" e eu, assustado, dou um pulo para a calçada, peço desculpas e viro as costas, continuando ao celular e andando, já na calçada.

Ai, percebo que a viatura andava ao meu lado, com três policiais de preto, ao que escuto, em alto e bom som: "Saia da rua, seu malandro e bêbado". Nesse momento, pensei: Isto não é jeito de tratar as pessoas na rua e respondi: "Não sou bêbado nem malandro; se vocês não estiverem em operação, está errado andarem com essa viatura preta e apagada, pois quase me atropelaram e vão acabar atropelando alguém!"

Oportunidade em que os homens de preto descem da viatura dizendo: "Ô malandro, tu é abusado, tá preso". Ato contínuo, diante da voz de prisão, estendo os dois braços para ser algemado. Pergunto ao mais novo dos três, que estava completamente alterado: "Qual o motivo da prisão?" Resposta: "Desacato". Pergunto novamente: "O que os senhores entendem como desacato?" Resposta: "Até a DP a gente inventa, se a gente te levar pra lá".

Neste exato momento, percebendo a gravidade da situação, disse: “Estou me identificando como juiz federal e minha identificação funcional está dentro da minha carteira, no bolso da bermuda”. Imediatamente o policial novinho, que se identificou como André e na DP disse se chamar Cristiano meteu a mão no meu bolso, pegou a minha carteira e a colocou em um dos bolsos de sua farda preta. Então o impensável aconteceu! Disseram: "Juiz Federal é o c..., tu é malandro e vai para a caçapa do camburão”.

Fui atirado na mala do camburão como bandido, algemado, porém, com o celular no bolso e os três policiais do CORE da Policia Civil do Estado do Rio de Janeiro, dizendo que no máximo eu deveria ser "juiz arbitral ou de futebol"... Temendo pela vida, por incrível que pareça me veio aquela frase de Dante, da sua obra "Divina Comédia": "Abandonai toda a esperança, vós que entrais aqui". Então, sem perder as esperanças, peguei o celular do bolso mesmo algemado e liguei para a assessoria de segurança da Justiça Federal informando a situação, bem baixinho, e que não sabia se seria levado para DP, pedindo para acionar a PM e localizar a viatura do CORE que estava circulando pela Lapa comigo jogado algemado na mala.

Após a ligação, disse-lhes uma única coisa, ainda na viatura. "Vocês estão cometendo crime”, ao que escutei dos três, aos risos: "Juiz federal andando com esse chapéu igual a malandro. Até parece. Se você for mesmo juiz, a gente vai chamar a imprensa, pois juiz não pode andar como malandro".

Na delegacia, as gracinhas dos policiais continuaram: "Olha o chapéu do malandro". Então eu disse, já me sentindo em segurança: "Vocês querem que eu tire o chapéu e vista terno e gravata?"

O fato é que já na presença do delegado as algemas foram retiradas e, vinte minutos depois, um dos policiais de preto vem ao meu encontro e me pede: "Excelência, desculpas, nos agimos mal, podemos deixar por isso mesmo?".

Respondi: "Primeiro, não me chame de Excelência, pois até há pouco vocês me chamavam de malandro. Segundo, não, não pode ficar por isso mesmo. Como é que vocês tratam assim as pessoas na rua, como se fossem bandidos? Terceiro, vocês três não honram a farda que estão vestindo. Quarto, desde a abordagem policial agi apenas como cidadão, no que fui desrespeitado e, depois de ter me identificado como juiz federal, fui mais ainda, logo, um crime de abuso de autoridade seguido de outro de desacato.

Depois do circo montado pelo próprio agente do CORE Cristiano, que ligara do interior da DP para os repórteres, de forma incessante, talvez temendo que ele e seus dois colegas de farda preta fossem presos por mim no interior da DP, decidi não fazê-lo porque em nada prejudica a instauração de procedimento administrativo na Corregedoria da Policia Civil, bem como a ação penal por abuso de autoridade e desacato, sendo desnecessário mencionar o dano à minha pessoa, como cidadão e magistrado.

Pensei, por fim: "Se como juiz federal fui ameaçado por três homens de fardas pretas com pistolas automáticas, algemado e jogado como um bandido na mala de um camburão, simplesmente por tê-los repreendido, de forma educada, como convém a qualquer pessoa de bem, o que aconteceria a um cidadão desprovido de autoridade e desconhecimento dos seus direitos?". Duas coisas são certas, de minha parte: não permitirei nada "passar" em branco, pois são fatos sérios e graves que partiram daqueles que têm o dever de zelar pela segurança da sociedade e, no próximo carnaval, não usarei o presente da namorada, o tal "chapéu".

É perigoso. Pode ser coisa de malandro.

domingo, 13 de abril de 2008

Carma (Paul Brunton)

Aquele que purificou suficientemente o seu caráter, controlou seus sentimentos, desenvolveu sua razão e deixou sua intuição desabrochar, está pronto para enfrentar tudo o que vier. E a fazê-lo corretamente.

Ele não precisa temer o futuro. O tempo corre a seu favor, pois ele parou de acrescentar carma negativo à sua conta, e em vez disso, a cada dia, acrescenta carma positivo.

Devemos realmente desenvolver a atitude de considerar que nossos infortúnios, problemas e desapontamentos pessoais, têm origem em nossas próprias fraquezas, defeito, faltas, deficiências e indisciplinas.

Não devemos culpar outras pessoas ou o destino. Dessa forma faremos progresso mais rápido, pois, atribuir a culpa a causas externas, como uma forma de auto-defesa, de auto-justificação ou de auto-piedade, significa agarrar-se ao ego.

Nada pode ser ganho com este auto-engano lisonjeiro, enquanto muito se pode perder com ele. Devemos admitir francamente que somos nós próprios a causa principal da maior parte de nossos males, bem como a causa secundária de alguns dos males dos outros.

sábado, 5 de abril de 2008

Hamilton Naki (The Economist)

Hamilton Naki, um sul-africano negro de 78 anos, morreu no final de maio de 2005. A notícia rendeu poucas manchetes, mas a história dele é uma das mais extraordinárias do século 20. "The Economist" contou-a em seu obituário:

Naki era um grande cirurgião. Foi ele quem retirou do corpo da doadora o coração transplantado para o peito de Louis Washkanky em dezembro de 1967, na cidade do Cabo, na África do Sul, na primeira operação de transplante cardíaco humano bem-sucedida.

É um trabalho delicadíssimo. O coração doado tem de ser retirado e preservado com o máximo cuidado. Naki era talvez o segundo homem mais importante na equipe que fez o primeiro transplante cardíaco da história. Mas não podia aparecer porque era negro no país do apartheid.

O cirurgião-chefe do grupo, o branco Christiaan Barnard, tornou-se uma celebridade instantânea. Mas Hamilton Naki não podia nem sair nas fotografias da equipe. Quando apareceu numa, por descuido, o hospital informou que era um faxineiro.

Naki usava jaleco e máscara, porém jamais estudara medicina ou cirurgia. Tinha largado a escola aos 14 anos. Era jardineiro na Escola de Medicina da Cidade do Cabo. Todavia, aprendia depressa e era curioso. Tornou-se o faz-tudo na clínica cirúrgica da escola, onde os médicos brancos treinavam as técnicas de transplante em cães e porcos.

Começou limpando os chiqueiros. Aprendeu cirurgia assistindo experiências com animais. Tornou-se um cirurgião excepcional, a tal ponto que Barnard requisitou-o para sua equipe.

Era uma quebra das leis sul-africanas. Naki, negro, não podia operar pacientes, nem tocar no sangue de brancos. Contudo, o hospital abriu uma exceção para ele.

Virou um cirurgião, mas clandestino. Era o melhor, dava aulas aos estudantes brancos, entretanto, ganhava salário de técnico de laboratório, o máximo que o hospital podia pagar a um negro. Vivia num barraco sem luz elétrica nem água corrente, num gueto da periferia.

Hamilton Naki ensinou cirurgia durante 40 anos e aposentou-se com uma pensão de jardineiro, de 275 dólares por mês. Depois que o apartheid acabou, ganhou uma condecoração e um diploma de médico honoris causa. Nunca reclamou das injustiças que sofreu a vida toda.