É ético um jornalista usar câmaras secretas para
comprovar um crime que, depois, ele irá denunciar? Não discuto, aqui, a
legalidade de sua ação, porque não tenho a formação jurídica necessária para me
pronunciar sobre as leis e jurisprudência cabíveis no caso. Mas a questão
adquire relevância diante do fato que movimentou a sociedade brasileira na
semana que passou: a revelação, em imagens incontestáveis, de uma rede de
corrupção atuando justamente nos hospitais - o que torna particularmente
desumano o crime, porque está sendo cometido contra pessoas especialmente
vulneráveis. Isso, além de ser uma área em que cronicamente falta dinheiro, até
porque os custos com a saúde costumam subir mais que a inflação, em parte
devido aos grandes avanços que a medicina tem conhecido.
O que é flagrante é a falta de ética das pessoas
que vimos no "Fantástico" e no "Jornal Nacional". Os
corruptos (vou chamá-los assim, embora tecnicamente não o sejam, porque não são
servidores públicos) não mostraram nenhum pudor. Imaginando-se a salvo, foram
francos. Duas afirmações me chocaram em especial. Primeira, quando uma senhora
diz que está praticando "a ética do mercado". Mas o que ela faz não é
nada ético. A não ser, claro, que use "ética" num sentido apenas
descritivo, como quando se diz que a "ética do bandido" é matar quem
o alcagueta, ou que a "ética do machista" é assassinar a esposa
suspeita de adultério. Contudo, um dos ganhos dos últimos anos tem sido a
redução desse emprego da palavra "ética", só descritivo. Cada vez
mais, entendemos a ética como prescritiva, normativa, como exigente - não como
a mera descrição de condutas praticadas em alguma área da ação humana. Uma
expressão de Claudio Abramo, frequentemente citada pelos profissionais da
imprensa, é significativa: "A ética do jornalista é a mesma do marceneiro,
de qualquer pessoa".
Na verdade, até esperei, depois dessa frase sobre
"a ética do mercado", que "o mercado" reagisse de alguma
forma. Se ela dissesse que essa é a ética dos médicos, as associações não iriam
protestar? É claro que "o mercado" não é um sujeito. Aliás, sua
riqueza e eficácia estão, justamente, em ele não ser um sujeito único, mas uma
rede em que se cruzam e medem inúmeros sujeitos. No entanto, aqui se coloca uma
questão crucial, sempre presente quando se trata do capitalismo. Brecht tem a
frase famosa: "O que é roubar um banco, em comparação com fundar um
banco?" O capitalismo sempre esteve assombrado pela diferença entre o
lucro obtido legítima e legalmente, e o que é extorsão, usura, roubo. Na Idade
Média, a igreja cristã condenava a usura, dificultando as operações de
financiamento. Por outro lado, com o capitalismo já consolidado, no final do
século XIX um grupo de grandes empresários norte-americanos era chamado de
"robber barons", barões ladrões, tal a sua desonestidade. Contudo, o
mesmo capitalismo cresce graças a uma ética extremamente forte, que Max Weber,
num livro clássico, aproximou do protestantismo. Na verdade, a distinção entre
o lucro e a extorsão é crucial para o capitalismo. Um dos desafios para ele
funcionar, e em especial para se tornar popular, é convencer a sociedade de que
seu compromisso ético - com a construção da riqueza pelo trabalho e o esforço -
supera seus deslizes, os quais serão rigorosamente punidos. Ou seja, "o
mercado" precisa reagir. O debate sobre esse caso não pode ficar
circunscrito à área política. "O mercado" foi injuriado, tem de
responder.
O outro ponto assustador foi quando um dos
personagens gravados disse que sempre ensinava a seus filhos a virtude da
solidariedade. Disse isso com outras palavras, mas ele considerava digno de
educar seus filhos na formação de quadrilha. Aqui, estamos diretamente na ética
do crime. Mas, se na frase da senhora sobre o mercado podíamos ver alguma
ironia ou resignação ("a vida como ela é"), na frase desse senhor se
ouvia algo mais grave: a educação dos filhos, a construção do futuro segundo a
ótica do criminoso. Uma coisa é resignar-se ao mundo como está e operar dentro
dele. Outra, pior, é entender que ele não vai melhorar e, portanto, a melhor
educação que se deve dar aos pequenos é ensiná-los a serem bandidos. Aqui, a
tarefa afeta, em especial, os educadores profissionais, como os professores, e
a multidão de educadores leigos, que são os pais e todos os que cuidam de
crianças. Mas, antes mesmo disso, ela passa por uma pergunta cândida: podemos
melhorar, em termos de sociedade, no que se refere ao respeito da lei e dos
outros? É possível convencermo-nos, e convencermos os outros, de que seguir os
preceitos éticos é absolutamente necessário? Ou viveremos nas exceções? E isso
diz respeito a todos nós.
Ocorreu-me, uma vez, que no Brasil a lei tem papel
mais indicativo do que prescritivo. Explico: todos concordamos que se deve parar
no sinal verde - e a grande maioria o faz. Mas a pressa, o fato de não estar
vindo um carro pela outra via, a demora no sinal "justificam"
eventualmente passar no sinal vermelho. A lei deixa de ser lei para se tornar
uma referência, apenas; ou, pior, algo que espero que os outros respeitem
absolutamente, mas que infringirei quando me achar "justificado" a
fazê-lo. Guiando desse jeito, vários pais mataram os próprios filhos - e isso
continua acontecendo. Não precisaremos fortalecer, enquanto sociedade, a convicção
de que para um bom convívio é preciso repudiar fortemente essas duas frases
que, na sua euforia, os dois personagens pronunciaram sem saberem que estavam
sendo gravados? Enquanto isso, obrigado aos repórteres que denunciaram esse
crime.