domingo, 5 de dezembro de 2010

A última minoria (Fábio Ulhoa Coelho)

Quando Barack Obama, em janeiro de 2009, tomou posse como presidente dos Estados Unidos, a trajetória da luta pelos direitos da minoria registrou evento de simbolismo ímpar - um dos mais importantes cargos do mundo (se não o mais importante) era ocupado, a partir de então, por um negro.

Naquele momento acontecia algo absolutamente impensável há algumas décadas. E acontecia, pode-se dizer, com a naturalidade que devia mesmo caracterizá-lo. Ter-se dado pouca relevância à cor do novo presidente explica-se, exatamente, em razão dos avanços da luta pelos direitos das minorias. A falta de extraordinário destaque a essa particular circunstância revela o amadurecimento da sociedade norte-americana, cerca de meio século depois de deflagrado o movimento pelos direitos civis.

Sendo a assim chamada "raça" da pessoa em tudo irrelevante na avaliação da sua competência como chefe de Estado e de governo, não há mesmo nenhum motivo para dispensar a esse detalhe qualquer atenção desmedida.

A posse de Obama, no entanto, serve também a outra reflexão, igualmente importante para se compreender a trajetória da luta pelos direitos da minoria, para se perceber que, por mais eloquente que tenha sido, naquele momento, o resultado dessa luta, ela ainda não terminou. Há vários exemplos de representantes de outras minorias na chefia de governos e Estados em países democráticos. O gênero da pessoa, há tempos, não tem nenhuma importância na escolha de governantes e até mesmo a orientação sexual não é mais levada em conta em alguns lugares (na Alemanha, por exemplo).

O que demonstrou, na posse de Obama, que a luta pelos direitos da minoria ainda tem chão pela frente foi o acento dado à religião na cerimônia. Além do tradicional juramento com as mãos sobre a Bíblia, abriu-se a palavra à bênção de dois pastores. Sendo os EUA um Estado laico, a reverência dada à questão religiosa no transcorrer do ritual de transmissão da presidência liga-se a um aspecto importante da política: refiro-me ao preconceito contra uma minoria, os ateus.

Esse preconceito habita a política brasileira. É uma história de todos conhecida a tergiversação de Fernando Henrique Cardoso diante da pergunta do jornalista Boris Casoy, num debate entre os postulantes à Prefeitura de São Paulo em 1985, sobre se ele seria ateu. "Se não fosse, é óbvio que teria respondido, de modo direto e claro, à pergunta; se tergiversou, é ateu" - certamente foi isso que pensou algum eleitor. Nos anos seguintes, FHC visitou a Basílica de Nossa Senhora Aparecida no dia da padroeira. Independentemente da crença, ou não, que nutre ou nutria, em Deus, ele tinha de mostrar ao eleitorado que professava uma religião.

Mas por que a cor, o gênero e a opção sexual do candidato a cargos eletivos são, hoje, considerados atributos irrelevantes, mas a crença dele não? Por que o eleitor resiste a eleger um prefeito, governador ou presidente assumidamente ateu?

A questão surge como extremamente oportuna no interregno entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial em curso, quando, diante das dúvidas sobre a descriminalização do aborto, ganhou inusitada e inesperada relevância a crença religiosa cultivada pelos postulantes. Teria qualquer chance de se eleger um hipotético candidato à Presidência da República, no Brasil, que se apresentasse ao eleitorado como ateu?

Os ateus compõem uma minoria. São socialmente discriminados por suas convicções. Preferem, muitas vezes, ocultar a falta de crença na existência de um Deus criador e ordenador a se expor a tais discriminações. Mas, assim como a cor, o gênero e a opção sexual da pessoa, a falta de religião e de fé é atributo que não deveria pesar na hora da escolha dos governantes.

O preconceito contra os ateus origina-se da ideia de que a crença em Deus serve como freio moral. Assim, uma pessoa sem Deus seria desprovida de valores para discernir o certo do errado e, por isso, só conseguiria nortear sua conduta a partir de interesses egoístas. Essa ideia é falsa.

Quem respeita as normas de convivência social com medo da punição divina ou para obter beneplácitos celestiais é, sob o ponto de vista moral, uma pessoa bem mais frágil do que o ateu. Quando este age conforme tais normas, a despeito de qualquer temor de castigo ou desejo de recompensa futura, é porque está convencido da importância dos preceitos morais, tanto para sua própria vida como para a dos outros.

O preconceito contra o ateísmo talvez não seja perceptível no dia a dia. Afinal, não se divulgam discriminações no trabalho, em ambientes sociais ou manifestações culturais. Durante as eleições, no entanto, o preconceito aflora de modo avassalador.

José Serra, em Goiânia, beija o rosário e Dilma Rousseff vai à missa no Santuário de Aparecida - manifestações de religiosidade explícita tornam-se tema obrigatório de campanha, para que os candidatos (ateus ou crentes, pouco importa) possam defender-se eficazmente do preconceito contra o ateísmo.

E enquanto vicejar este preconceito, há sempre o risco de o debate político se contaminar por obscurantismos e fundamentalismos, desviando a atenção da campanha eleitoral para assuntos que fogem aos que realmente interessam ao País. O combate ao preconceito contra os ateus contribui, portanto, para o fortalecimento da democracia. Aliás, fortalece-a o combate a qualquer preconceito.

E assim como a emancipação da mulher é do interesse também dos homens, e o fim do apartheid não trouxe proveito somente aos diretamente prejudicados por essa nefasta política racial, também aos crentes interessa a superação dos preconceitos contra os ateus. Ganharíamos todos nós, os brasileiros, cuja significativa maioria tem religião e nutre fervorosa fé em Deus, se mais este preconceito fosse extirpado da política.

domingo, 7 de novembro de 2010

Vaidade (Rosana Hermann)

Cantor do LS Jack é internado em coma no Rio após lipoaspiração É possível isso? É admissível isso? Um rapaz de 27 anos ter uma parada cardíaca e entrar em coma após uma cirurgia de lipoaspiração?

Pelo amor de Deus, eu não quero usar nada nem ninguém, nem falar do que não sei, nem procurar culpados, nem acusar ou apontar pessoas, mas ninguém está percebendo que toda essa busca insana pela estética ideal é muito menos lipo-as e muito mais piração?

Uma coisa é saúde outra é obsessão.
O mundo pirou, enlouqueceu.
Hoje, Deus é a auto imagem.
Religião, é dieta.
Fé, só na estética.
Ritual é malhação.
Amor é cafona, sinceridade é careta, pudor é ridículo, sentimento é bobagem.
Gordura é pecado mortal.
Ruga é contravenção.
Roubar pode, envelhecer, não.
Estria é caso de polícia.
Celulite é falta de educação.
Filho da puta bem sucedido é exemplo de sucesso.
A máxima moderna é uma só: pagando bem, que mal tem?

A sociedade consumidora, a que tem dinheiro, a que produz, não pensa em mais nada além da imagem, imagem, imagem. Imagem, estética, medidas, beleza. Nada mais importa

Não importam os sentimentos, não importa a cultura, a sabedoria, o relacionamento, a amizade, a ajuda, nada mais importa. Não importa o outro, a humanidade, o coletivo.

Jovens não têm mais fé, nem idealismo, nem posição política.
Adultos perdem o senso em busca da juventude fabricada.

Ok, eu também quero me sentir bem, quero caber nas roupas, quero ficar legal, quero caminhar correr, viver muito, ter uma aparência legal mas uma sociedade de adolescentes anoréxicas e bulímicas, de jovens lipoaspirados, turbinados, aos vinte anos não é natural. Não é, não pode ser. Deus permita que ele volte do coma sem seqüelas.

Que as pessoas discutam o assunto. Que alguém acorde. Que o mundo mude. Que eu me acalme. Que o amor sobreviva.

domingo, 3 de outubro de 2010

Ganhei coragem (Rubem Alves)

"Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece", observou Nietzsche. É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por medo. Albert Camus, ledor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora quando a coragem chega: "Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos". Tardiamente. Na velhice. Como estou velho, ganhei coragem. Vou dizer aquilo sobre que me calei: "O povo unido jamais será vencido": é disso que eu tenho medo.

Em tempos passados invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política. Mas Deus foi exilado e o "povo" tomou o seu lugar: a democracia é o governo do povo... Não sei se foi bom negócio: o fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de televisão que o povo prefere.

A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse, na montanha, para que o povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os 10 mandamentos. E há estória do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras idéias. Amava a prostituição. Pulava de amante a amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou... Passado muito tempo Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos... E que foi que viu? Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: "Agora você será minha para sempre..." Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus. Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta. Mas sabia que ela não era confiável. O povo sempre preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhes contavam mentiras. As mentiras são doces. A verdade é amarga. Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos o circo era os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo. O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos. Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro O homem moral e a sociedade imoral observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais. Sentem-se "responsáveis" por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas. Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo, tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo. Meu amigo Lisâneas Maciel, no meio de uma campanha eleitoral, me dizia que estava difícil porque o outro candidato a deputado comprava os votos do povo por franguinhos da Sadia. E a democracia se faz com os votos do povo... Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. É sobre esse pressuposto que se constrói o ideal da democracia. Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições – e a democracia - são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras. O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à coletividade. Uma coisa é o ideal democrático, que eu amo. Outra coisa são as práticas de engano pelas quais o povo é seduzido. O povo é a massa de manobra sobre a qual os espertos trabalham. Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus Cristo foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás. Durante a Revolução Cultural na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar. O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer. O mais famoso dos automóveis foi criado pelo governo alemão para o povo: o Volkswagen. Volk, em alemão, quer dizer "povo"...

O povo unido jamais será vencido! Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos... Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio, não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol (tive a desgraça de viajar por duas vezes, de avião, com um time de futebol...). Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e engolir sapos e a brincar de "boca-de-forno", à semelhança do que aconteceu na China.

De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: "Caminhando e cantando e seguindo a canção..." Isso é tarefa para os artistas e educadores: O povo que amo não é uma realidade. É uma esperança.

domingo, 5 de setembro de 2010

Carta para Cissa Guimarães (Christiane Souza Yared)

Querida mãe,

O que dizer nesta hora tão difícil?

O que ouvir quando todos e tudo ao redor parecem sair de um enorme pesadelo e o ruído das vozes que se seguem mal chegam aos ouvidos? Quando o ar não é mais suficiente e a dor da separação nos leva a sala de parto novamente?

Os dias que se seguirão, parecerão noites e as noites, dias sem fins. Para cada momento uma lembrança e a ferida que não cicatriza, parece ainda mais exposta e vulnerável com o passar do tempo, dizem que o tempo é o melhor remédio, creia, amada, ele é amargo demais.

Só há um lugar para onde ir, este refúgio que encontrei tenho tentado ensinar o caminho a outras mães, pois sei que o que nos foi tirado, nosso bem maior, o pequeno ser que embalamos, amamentamos, cuidamos e amamos, nada poderá trazê-los de volta.

Sei que se chorássemos todas as lágrimas e gritássemos todos os gritos de dor que estão contidos em nossas almas, mesmo assim não seriam suficientes para trazê-los.

No primeiro momento tentamos achar o culpado, o rapaz que dirigia estava em alta velocidade. Certamente foi ele, mas e Deus?

Onde estava Deus que não viu o meu lindo moço de cabelos fartos e sorriso encantador, que envolvia todos com suas histórias deixando no ar a sensação de ficar após ter ido? Por que Deus não fez algo?

Querida mãe, a primeira lição que aprendi foi entender que Deus me amou e sua misericórdia resgatou meu filho no momento de dor. Se há um lugar perfeito, onde deixaríamos nossos filhos este é nos braços do Pai.

Deus não interfere, nos deu um mundo para nele vivermos em harmonia e se existe um culpado, infelizmente somos nós! Aceitamos todas as coisas e só nos importamos quando é o NOSSO filho.

Esta nação está ferida e ferida de morte, o sangue de inocentes está literalmente lavando o asfalto de nossas cidades. Será necessário morrer um filho de cada família para que algo seja feito?

Nossos jovens estão sendo arrancados de seus lares e suas famílias estão dilaceradas com tamanha dor. O medo nos invade, pois os que nos restam ainda precisam viver neste país sem leis para assassinos de trânsito. Até quando?

Não terá apenas um deputado que se importe e leve ao congresso as mães que perderam seus filhos nesta guerra horrenda e injusta? Faltará espaço em Brasília, será maior que qualquer congresso já realizado. Nós somos as mães que prepararam seus filhos para servir a nação!

Meu filho falava quatro línguas, tinha duas faculdades, não usava drogas, não era chegado a bebidas, sempre usou o cinto de segurança, foi morto por um jovem deputado que estava em alta velocidade, embriagado e com a carteira com mais de 130 pontos. Foi decapitado, estraçalhado, moído. Não matou apenas meu filho e seu amigo, matou a mim também.

Ensina a criança no caminho em que deve andar e até ficar velho não se desviará dele.

Não podemos apenas chorar, temos que nos unir e de alguma forma mudar o país em que vivemos, para que os outros filhos, os que nos restam, possam ter a oportunidade de viver.

Meu refúgio é Deus, meu porto seguro, minha esperança de rever meu amado.

Se Deus salvasse o seu e não o meu então seria um Deus injusto!

Se precisamos mudar e algo precisa ser feito, então faremos para que outras mães não venham a sofrer a amargura da separação tão precoce de jovens que antes enchiam a casa de alegria e agora enchem cemitérios.

Querida mãe, sei que parece impossível mudar um país, mas também sei que um país é feito de famílias que desejam o melhor para seus filhos. Um pai sonha os sonhos de seu filho desde quando nasce e vive como se fossem seus.

Se é triste e inconsolável a dor da perda de um filho, muito maior será nossa dor se não fizermos nada e perdermos novamente, e creia, eu sei do que falo. Ninguém cometeu maior erro do que aquele que não fez nada só porque podia fazer muito pouco.

Se cada mãe, pai, família, cada cidadão fizer um pouco, teremos muito!
A justiça é para os vivos, os mortos não precisam dela!

E a nação ouvirá o nosso clamor.

Nota: Christiane Souza Yared, mãe de Gilmar Rafael Yared, um dos jovens mortos no acidente provocado pelo ex-deputado Carli Filho, que dirigia alcoolizado e a mais de 160 km/h.

domingo, 1 de agosto de 2010

Paixão Nacional (Cristovam Buarque)

Em cada dez dos melhores jogadores de futebol do mundo, pelo menos cinco são brasileiros. Entre todos os prêmios Nobel do mundo, nenhum é brasileiro. Entre os grandes jogadores brasileiros, quase todos têm origem pobre, enquanto quase todos os profissionais de nível superior vêm das camadas ricas e médias.

Nestes tempos de Copa do Mundo, a TV e o rádio mostram, todos os dias, pequenas biografias dos nossos grandes jogadores. Em comum, todos têm o fato de terem começado a jogar futebol aos quatro anos de idade, em algum campo de pelada perto de casa, às vezes no quintal de um amigo. Todos continuaram, com persistência, os desenvolvimentos de seus talentos.

Transformaram-se em grandes craques, graças à oportunidade, ao talento e à persistência. No Brasil de hoje, 20 milhões de meninos jogam futebol. Se apenas um em cada dez mil tiver talento e persistência, nas próximas Copas teremos dois mil ótimos jogadores; se for um em cada um milhão, ainda assim teremos dois times completos, formados por grandes craques.

O mesmo não vai acontecer com a ciência, a tecnologia e a literatura no Brasil. Não teremos 20 prêmios Nobel, nem mesmo juntando, a esses meninos, os outros 20 milhões de meninas. Porque poucos entrarão na escola aos quatro anos. Não terão acesso a verdadeiras escolas, não poderão persistir no desenvolvimento de talento, não terão livros ou computadores como têm bolas.

O Brasil tem grandes craques graças ao gosto pelo futebol, ao tamanho da nossa população e ao fato de que todos têm acesso à bola e ao campo de pelada. Nosso país não tem, até hoje, nenhum Prêmio Nobel de Literatura ou Física, porque poucos têm acesso a ensino de qualidade desde a primeira infância, com professores bem remunerados, preparados e dedicados, dispondo de livros e computadores na quantidade e qualidade necessárias. Os campos e as bolas surgem espontaneamente, ou pelo esforço da comunidade e dos próprios meninos. A escola e os computadores só estarão à disposição se houver um esforço deliberado do país inteiro.

Ninguém vira craque por sorte, e sim por talento e persistência. Mas, no Brasil, o desenvolvimento intelectual depende, antes de tudo, da sorte de nascer em uma família rica, em uma cidade próspera, com um prefeito que dê prioridade à educação. O talento e a persistência vêm depois porque, antes, precisam de oportunidade: uma escola de qualidade. O desenvolvimento intelectual depende de condições criadas pelo Estado nacional: escolas, livros, computadores, professores. Se tivéssemos feito isso há cinqüenta anos, o Brasil seria o campeão do saber, e não o lanterninha, posição que ocupamos atualmente.

Se o fizermos agora, daqui a 20 anos teremos recuperado terreno, e aí teremos a chance de vencer não só a Copa do Mundo, mas também a Copa do Saber, do conhecimento, da ciência, da tecnologia, da literatura. Ganharemos as medalhas do Nobel, além das taças da Copa. Além do mais, teremos o capital e as bases para construirmos o Brasil do século XXI. O futebol deslumbra, mas só o saber constrói.

Tudo isso, porém, enfrenta um grave impedimento: os brasileiros têm paixão pelo futebol. As vitórias emocionam, as derrotas deixam todos abatidos. Mas não existe a mesma paixão pela educação. Há semanas, os meios de comunicação informaram que estamos perdendo para o Haiti em termos de repetência escolar. Nada aconteceu, ninguém se incomodou. Se tivéssemos perdido para o Haiti no futebol, nossos jogadores teriam sido muito mal recebidos na sua volta ao Brasil. Para que as medalhas intelectuais cheguem, é preciso ter pela escola a mesma paixão que o Brasil tem pelo futebol.

domingo, 4 de julho de 2010

Crimes, machismo e vinganças (Luís Carlos Lopes)

As grandes mídias já esqueceram os crimes rumorosos de ontem e já escolheram um novo para continuar o espetáculo de sangue e de ódio. Afinal, o show não pode parar. A idéia é esta: juntar a oportunidade ao script de sempre. Os ingredientes são bem conhecidos, tornam-se ainda mais fortes quando se trata de pessoas que já haviam alcançado alguns degraus da fama e do dinheiro fácil.

Os grandes assuntos que perpassam estes acontecimentos funestos estão presentes nas palavras usadas para noticiar os fatos. Mas, esta presença não é interpretada, o que interessa é narrar o horror e ganhar audiência com os detalhes sórdidos. Estes atraem o grande público, já corrompido com a lógica irracionalista do mundo cão do cotidiano de suas vidas e o descrito no universo alucinado das reportagens.

Quando menos se esperava, o Brasil parou. Parece que agora só existe um crime e que aquele fato é o único assunto a ser consumido. A cobertura das emissoras de Tv e de rádio, dos jornais e das revistas impressas é cerrada. Tudo ecoa na Internet, repetindo-se interminavelmente até o cenário final do julgamento. Ninguém é poupado dos detalhes, por mais escabrosos que sejam. Os operadores da Justiça e da Polícia dão inúmeras entrevistas focando o drama deste último caso, como ocorreu nos anteriores. Tudo se repete melancolicamente, sem qualquer reflexão.

O crime escolhido agora para representar o Brasil nas mídias tem o poder aparente de se fazer esquecer de todo o resto. Não há mais uma eleição em curso. A tragédia do Golfo do México sumiu do mapa midiático. A Copa do Mundo acabou, porque o Brasil foi desclassificado. Os mil e um problemas do Brasil são reduzidos a um único episódio, com farta mobilização das pessoas que clamam por justiça e gritam xingamentos para os acusados que desfilam frente às câmeras. A catarse, obtida com muita emoção alienada, paralisa o pensamento, impedindo qualquer espaço para o advento de uma visão racional.

O grito arcaico de vingança é fortemente estimulado e as pessoas acreditam que haverá justiça unicamente com a necessária punição daqueles culpados. O contexto onde o crime brutal foi cometido desaparece do cenário. Ele é ocupado pelos arquétipos do mal e do bem, personalizados pela bela e a fera, esta última é, com razão, estigmatizada como fosse única e solitária. Com isto, os verdadeiros problemas sociais, econômicos, políticos e culturais que permitiram a barbárie deste fato, como a de muitos outros, são colocados para baixo do tapete.

A violência deste último crime foi radical e impressionante. Entretanto, infelizmente, tratar violentamente mulheres é um esporte nacional. Não casualmente, foi feita uma lei – Maria da Penha – para tentar coibir e punir fatos desta natureza. Não são poucas mulheres que são assassinadas pelo ‘crime’ de serem mulheres. Ainda há um contexto social que apóia e considera normal o sexismo de muitos homens que se acreditam como superiores às mulheres e com o direito de dispor delas como quiserem.

A solidariedade masculina vista no episódio é habitual, atingindo, igualmente, a um grande conjunto de mulheres que aceitam sem qualquer problema o machismo de seus parceiros. O sexismo é uma ideologia, não tem sexo, idade, cor ou classe social. Esta solidariedade explicaria a inação das autoridades que foram alertadas deste crime anunciado pela própria vítima, que registrou o problema em uma longa entrevista incriminadora dada à maior rede de Tv do país e deu queixa às autoridades. Tudo isto faz com que se compreenda sua ingenuidade relativa de vítima traída por quem poderia ajudá-la: as instituições de Estado.

Philippe Breton, falando dos episódios de violência terríveis conhecidos em casos como o do nazifascismo e das guerras dos últimos cem anos, desenvolveu a hipótese da lógica da vingança. Este se aplica a este caso, com as diferenças de não se tratar de um bando organizado de grandes proporções e de um massacre étnico ou político específico. Mas, nele pode se ver os ovos da serpente chocando sem maiores problemas.

A violência de indivíduos ou de bandos não sai de uma cartola mágica. Ela surge de um processo complexo, onde ela é disseminada, desde a mais tenra idade. Homens ou mulheres violentas não são necessariamente loucos. As pesquisas de Breton e de outros mostram que a loucura explicaria a violência de alguns indivíduos de um mesmo bando de facínoras. Seria incapaz de fazer compreender a violência extrema de todos.

A maioria dos violentos sofreria de uma espécie de divisão psíquica. Esta seria cultivada desde cedo no ambiente familiar, nas comunidades onde se vive, nas instituições que recolhem menores e adultos, nas escolas, nos grupos de camaradagem e, hoje, com grande força, na exposição diária às mídias que exploram a violência de modo sistemático e radical. As mídias isoladamente não transformariam ninguém em pessoa violenta, mas dariam uma boa ajuda. O ambiente econômico-político geral seria um outro fator facilitador da explosão de violência radical.

O primitivismo arquetípico da vingança contra uma pessoa simboliza, nesse caso, o ato de um pequeno grupo masculino que empunhou o ódio contra gênero feminino. Este visto como inferior e sem qualquer direito. As coisas saíram do controle e chegaram ao extremo. Todavia, os brasileiros mais atentos sabem que inúmeras mulheres apanham, algumas são torturadas, outras mortas e todas são desvalorizadas diariamente pelas grandes e pequenas mídias. Nestas, são tratadas como carne, bichos ou brinquedos masculinos.

Não deveria causar espanto a ninguém a possibilidade de acontecer o que aconteceu. Não é segredo que o machismo seduz a consciência feminina brasileira. É bastante comum que muitas mulheres, principalmente, mas não unicamente as mais pobres, achem que o comportamento masculino sexista e avesso ao amor seja natural e correto. Infelizmente, a consciência crítica do problema é indigente, tanto para os homens, como para uma grande parte das mulheres. Como estas são as mais fracas, tendem a sofrer mais. Mas, há situações onde as coisas se invertem e a vingança feminina aparece com todo o seu furor.

Nas classes médias, onde elas têm mais poder, facilmente, a vingança feminina se materializa, com a ajuda das instituições de Estado, no fundo conservadoras e defensoras da ordem tradicional. O fenômeno da alienação parental afeta homens e mulheres. Entretanto, o mais comum que esta prática seja mais feminina do que masculina. A única solução para as relações de gênero equilibradas é que elas sejam pautadas pela real afetividade e não por interesses mesquinhos, como se viu no crime em tela.

O ódio de qualquer natureza é algo mortal e avesso a qualquer racionalidade. Só se justifica em situações de defesa de uma forte opressão. Ao adotá-lo de modo frívolo e inconseqüente, os personagens do crime em tela optaram por algo vazio e sem sentido. Deverão pagar exemplarmente pelos seus crimes, assim todos os brasileiros conscientes esperam. Todavia, este, bem como outros crimes, deveria também servir para que se compreendessem melhor vários aspectos problemáticos da sociedade brasileira.

domingo, 20 de junho de 2010

Torço contra porque sou brasileiro (Bruno Momesso Bertolo)

A ocasião é mais do que oportuna para o presente artigo. É época de Copa do Mundo, o maior evento esportivo mundial. Sem dúvida, todos os países e seus habitantes acompanham tal acontecimento, pouco importando se a pessoa é ou não um fervoroso fã de futebol. Todavia, a relevância excepcional dada ao Mundial de Futebol em nosso país muito me preocupa.

A população entra em verdadeiro estado de hipnose. Os meios de comunicação não noticiam outro assunto. O mundo parece parar em pleno ano eleitoral. É claro que é algo que perdura durante um mês, mas as conseqüências podem ser permanentes ou por anos.

Desde a ditadura o futebol é utilizado como instrumento de alienação política. Sem querer entrar no aspecto político – afinal, sou apartidário e voto nulo –, Lula, assim como outros Presidentes da República, já afirmou que posará ao lado da seleção em caso de hexacampeonato. E isso certamente interferirá nos rumos das eleições que se aproximam. Seria cômico se não fosse trágico! Lamentavelmente, a maioria da população não possui discernimento para separar o (pseudo) sentimento de patriotismo e a alegria por um título de outras questões, acreditando que tudo está excelente em decorrência da euforia fomentada pela televisão.

Comecei a torcer contra a seleção de futebol após a Copa de 1994. Vibrei com o tetra. Tinha apenas 12 anos, mas o retorno dos jogadores despertou em mim uma profunda reflexão. Neste ponto, é necessária uma retrospectiva. Quando pousaram no Brasil, descobriu-se que os atletas trouxeram inúmeros eletrodomésticos que não passaram pela alfândega, ao arrepio do que determina a legislação. Ao serem indagados a respeito, alguns alegaram que tal benefício era o mínimo que poderiam receber pela conquista. Noutras palavras, se julgam acima da lei e melhor que os demais brasileiros.

Desde então, torço contra. Não só pelo ocorrido em 1994, pois poderia ser um fato isolado. Há outros fatores que sopesei no decorrer dos anos.

Um deles é o favorecimento do futebol em detrimento de outras modalidades esportivas. Os futebolistas sempre possuem verbas sobrando, se fixam em hotéis luxuosos, têm inúmeros patrocinadores etc. Enquanto isso, diversos atletas de outros esportes enfrentam dificuldades que, não raro, até os impedem de participar de um mundial ou de prosseguir na carreira. Tais circunstâncias explicam, em grande parte, porque temos desempenho ridículo em Olimpíadas, ao passo que países bem menores e menos populosos se posicionam à nossa frente.

Ademais, a meu ver, os futebolistas não se dedicam da mesma forma com que o fazem em seus clubes, isso quando não se ufanam acreditando que são os melhores e que o favoritismo lhes dará a vitória. A arrogância, a prepotência e o narcisismo ultrapassam os limites toleráveis, a ponto de causar ojeriza e antipatia.

Se não bastasse, note-se ainda a recente e deplorável tentativa de impedir Didier Drogba, jogador da Costa do Marfim, de participar do confronto entre sua seleção e a brasileira, sob o falso argumento que a proteção utilizada no braço do marfinense poderia representar riscos aos demais participantes. O intuito real era alijar a Costa do Marfim de seu principal astro. Que mérito há em vencer assim, valendo-se do famigerado e nefasto tapetão? Um motivo a mais para torcer contra, seja quem for. Falta de desportividade é inaceitável!

Em suma, são estas as razões pelas quais torço contra a seleção brasileira de futebol. Torço contra porque sou brasileiro. Torço para quem quiser, independentemente da nacionalidade. Meu patriotismo não se resume ao futebol. E nem poderia. Patriotismo é algo deveras amplo para se restringir a tamanha efemeridade e frivolidade que é uma Copa do Mundo de Futebol.

Pena que o brasileiro acredite que ostentar a bandeira nacional em jogos de futebol represente, por si só, civismo. Para mim, patriota é quem respeita as leis, cumpre seus deveres, trabalha com dedicação, procura construir um país melhor, ajuda o próximo etc.. Quando os políticos forem cobrados como os dirigentes de futebol o são pela torcida insatisfeita com uma derrota, nosso país certamente melhorará.

Almejo que o Brasil seja o país da honestidade, da saúde eficaz, da segurança pública presente, da habitação digna, do emprego estável, da educação universal etc. Mas há aqueles que preferem que sejamos a nação do futebol... Teria orgulho se nossas cinco estrelas fossem alusivas à qualidade de mencionadas áreas sociais. Porém, muitos preferem cinco títulos mundiais de futebol... É, gosto não se discute!

domingo, 2 de maio de 2010

Mundo da religião (Ed René Kivitz)

Uma parte dos atletas, entre eles, Robinho, Neymar, Ganso e Fabio Costa, se recusou a entrar numa entidade que cuida de excepcionais mantida por uma casa espírita, preferindo ficar dentro do ônibus do clube, sob a alegação de que são evangélicos.

Os meninos da Vila pisaram na bola. Mas prefiro sair em sua defesa. Eles não erraram sozinhos. Fizeram a cabeça deles. O mundo religioso é mestre em fazer a cabeça dos outros. Por isso cada vez mais me convenço de que o Cristianismo implica a superação da religião, e cada vez mais me dedico a pensar nas categorias da espiritualidade, em detrimento das categorias da religião.

A religião está baseada nos ritos, dogmas e credos, tabus e códigos morais de cada tradição de fé. A espiritualidade está fundamentada nos conteúdos universais de todas e cada uma das tradições de fé.

Quando você começa a discutir quem vai para céu e quem vai para o inferno, ou se Deus é a favor ou contra a prática do homossexualismo, ou mesmo se você tem que subir uma escada de joelhos ou dar o dízimo na igreja para alcançar o favor de Deus, você está discutindo religião.

Quando você começa a discutir se o correto é a reencarnação ou a ressurreição, a teoria de Darwin ou a narrativa do Gênesis, se o livro certo é a Bíblia ou o Corão, você está discutindo religião.

Quando você fica perguntando se a instituição social é espírita kardecista, evangélica, ou católica, você está discutindo religião.

O problema é que toda vez que você discute religião você afasta as pessoas umas das outras, promove o sectarismo e a intolerância.

A religião coloca de um lado os adoradores de Allá, de outro os adoradores de Yahweh, e de outro os adoradores de Jesus. Isso sem falar nos adoradores de Shiva, de Krishna e devotos do Buda, e por aí vai.

E cada grupo de adoradores deseja a extinção dos outros, ou pela conversão à sua religião, o que faz com que os outros deixem de existir enquanto outros e se tornem iguais a nós, ou pelo extermínio através do assassinato em nome de Deus, ou melhor, em nome de um deus, com “d “minúsculo, isto é, um ídolo que pretende se passar por Deus.

Mas quando você concentra sua atenção e ação, sua práxis, em valores como reconciliação, perdão, misericórdia, compaixão, solidariedade, amor e caridade, você está no horizonte da espiritualidade, comum a todas as tradições religiosas.

E quando você tem um coração cheio de espiritualidade – e não de religião –, você promove a justiça, o respeito, a solidariedade, a misericórdia e a paz.

Os valores espirituais agregam pessoas, aproximam os diferentes, fazem com que os discordantes no mundo das crenças se dêem as mãos no mundo da busca de superação do sofrimento humano, que a todos nós humilha e iguala, independentemente de raça, gênero, classe social e, inclusive, religião.

Em síntese, quando você vive no mundo da religião, você fica “no ônibus”.

Mas, quando você vive no mundo da espiritualidade que a sua religião ensina – ou pelo menos deveria ensinar – “você desce do ônibus” e dá um ovo de páscoa para uma criança que sofre a tragédia e a miséria de uma paralisia mental.

domingo, 4 de abril de 2010

O haver (Vinicius de Moraes)

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

domingo, 7 de março de 2010

Pais maus (Carlos Hecktheuer)

Um dia quando meus filhos forem crescidos o suficiente para entender a lógica que motiva os pais e as mães, eu hei de dizer-lhes:

Eu os amei o suficiente para ter perguntado aonde vão, com quem vão e a que horas regressarão.

Eu os amei o suficiente para não ter ficado em silêncio e fazer com que vocês soubessem que aquele novo amigo não era boa companhia.

Eu os amei o suficiente para os fazer pagar as balas que tiraram do supermercado ou revistas do jornaleiro, e os fazer dizer ao dono: " Nós pegamos isto ontem e queríamos pagar".

Eu os amei o suficiente para ter ficado em pé junto de vocês, duas horas, enquanto limpavam o seu quarto, tarefa que eu teria feito em 15 minutos.

Eu os amei o suficiente para os deixar ver além do amor que eu sentia por vocês, o desapontamento e também as lágrimas nos meus olhos.

Eu os amei o suficiente para os deixar assumir a responsabilidade das suas ações, mesmo quando as penalidades eram tão duras que me partiam o coração.

Mais do que tudo, eu os amei o suficiente para dizer-lhes não, quando eu sabia que vocês poderiam me odiar por isso (e em momentos até odiaram).

Essas eram as mais difíceis batalhas de todas.

Estou contente, venci... Porque no final vocês venceram também!

E em qualquer dia, quando meus netos forem crescidos o suficiente para entender a lógica que motiva os pais e as mães, quando eles lhes perguntarem se seus pais eram maus, meus filhos vão lhes dizer: "Sim, nossos pais eram maus. Eram os piores pais do mundo...".

As outras crianças comiam doces no café e nós tínhamos que comer cereais, ovos e torradas. As outras crianças bebiam refrigerante e comiam batatas fritas e sorvete no almoço e nós tínhamos que comer arroz, feijão, carne,legumes e frutas.

E eles nos obrigava a jantar a mesa, bem diferente dos outros pais que deixavam seus filhos comerem vendo televisão.

Eles insistiam em saber onde estávamos a toda hora (tocava nosso celular de madrugada e "fuçava" nos nossos e-mails). Era quase uma prisão.

Tinham que saber quem eram nossos amigos e o que nós fazíamos com eles. Insistia que lhe dissemos com quem íamos sair, mesmo que demorássemos apenas uma hora ou menos.

Nós tínhamos vergonha de admitir, mas eles "violavam as leis do trabalho infantil". Nós tínhamos que tirar a louça da mesa, arrumar nossas bagunças, esvaziar o lixo e fazer todo esse tipo de trabalho que achávamos cruéis. Eu acho que eles nem dormiam à noite, pensando em coisas para nos mandar fazer.

Insistiam sempre conosco para que lhes disséssemos sempre a verdade e apenas a verdade. E quando éramos adolescentes, eles conseguiam até ler os nossos pensamentos.

A nossa vida era mesmo chata. Eles não deixavam os nossos amigos tocarem a buzina para que saíssemos, eles tinham que subir, bater à porta e conhecê-los.

Enquanto todos podiam voltar tarde à noite, com 12 anos, tivemos que esperar pelos 16 para chegar um pouco mais tarde, e aqueles chatos levantavam para saber se a festa foi boa (só para ver como estávamos ao voltar).

Por causa de nossos pais, nós perdemos imensas experiências na adolescência: nenhum de nós esteve envolvido com drogas, em roubo, em atos de vandalismo, em violação de propriedade, nem fomos presos por nenhum crime. Foi tudo por causa deles.

Agora que já somos adultos, honestos e educados, estamos a fazer o nosso melhor para sermos "pais maus", como os meus foram.

Este é um dos males do mundo atual: não há pais maus suficientes.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O quanto de Boris existe em você? (William Douglas)

Após ouvir lixeiros desejarem "feliz 2010", Boris Casoy disse "... que m----, dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras... (risos)... dois lixeiros... o mais baixo da escala do trabalho." O episódio chocou. As reações que está sofrendo são exageradas? Ou ele as merece? Os lixeiros desejaram a todos (inclusive a ele, portanto) "paz, saúde, dinheiro, trabalho" e o que se seguiu foi, usando sua terminologia, "uma vergonha".

O pedido de desculpas, protocolar, não teve eficácia, talvez até o contrário. A oposição entre a imagem do apresentador e o comentário em off, revelador de uma visão elitista e preconceituosa, frustrou a ideia de respeito a todos e ao telespectador (imaginem o filho de um gari ouvindo isso). A rudeza dos comentários não se resolve por ter sido um acidente e não é fácil pedir desculpas pelo que se é ou pensa. Contudo, até que ponto a diferença entre nós e o Boris reside apenas no azar que ele deu pelo vazamento? O quanto de Boris existe em cada brasileiro?

Quando alguém se refere ao ponto "mais baixo na escala do trabalho" pode estar se referindo ao conteúdo moral ou social da atividade (como, por exemplo, criticar o tráfico ou a agiotagem), pelos riscos ou pela remuneração reduzida. A atividade de lixeiro não é nociva à sociedade. Nocivo seria, para a saúde e meio ambiente, que eles não atuassem. Como o risco não é tão grande, por eliminação, resta a remuneração. E aí reside um preconceito que resiste: julgar a dignidade das pessoas, ou das profissões, de acordo com sua remuneração. Há que se reconhecer que nem sempre existe equilíbrio entre a importância social de uma função e os ganhos que esta proporciona. E não se pode confundir o desejo de melhorar de vida ou ganhar mais, e a admiração por quem logra isto, com uma postura de menoscabo com as funções menos rentáveis.

Todo trabalho é digno. O que existe, em cada ofício, são pessoas que agem bem e outras não. Existem servidores públicos, CEO's, lixeiros, jornalistas e juízes dignos e indignos, o que se define pela forma como exercem sua atividade. Mais que isso, Jesus dizia que "a vida do homem não consiste na abundância dos bens que possui".

Se você, leitor, julga alguém melhor ou pior levando em consideração o quanto a pessoa ganha, ou como se veste, ou onde mora, é preciso reconhecer que em você há, escondido, um pouco desse lado sombrio que o Boris revelou ter. Talvez o lado positivo desse episódio seja a reflexão sobre até que ponto ele não revela nossos preconceitos em off.

Camila Pitanga, que faz o papel de uma faxineira na novela global, afirmou que anda pelo estúdio sem ser cumprimentada quando está com os trajes da personagem. Feliz pelo papel ser convincente, não deixou de anotar como é estranho ficar "invisível", Esse fenômeno já foi objeto de estudo por um professor da USP que, vestido de faxineiro, ficou "invisível" na universidade, por anos. Em suma, quem deixa de ver o faxineiro, não deixa de ter seu lado Boris. Não que o Boris seja de todo mal, ele não é. Ninguém é. Somos todos humanos, com nossos lados luminosos e sombrios.

Boris também errou ao analisar a função de lixeiro. Os "'garis" são figuras simpáticas à população, vivem de bom humor e, ao lado dos carteiros, têm índices de aprovação e confiança que fazem corar os Poderes, a igreja e a imprensa. Infelizmente, estas instituições não são eficientes para limpar seus respectivos "lixos" como os garis o são com o lixo que lhes cabe. Por fim, não esquecer que - com seu jeito e ginga - um gari ilustra o vídeo institucional da bem sucedida campanha "Rio 2016". No Rio, os concursos para gari são concorridíssimos.

Certa vez, fui a uma festa na casa de um Procurador do Ministério Público do Trabalho (negro e onde grande número de convidados eram afrodescendentes). Fui com meus dois filhos e a babá do mais novo. Ela, negra, não está acostumada a ir a festas com tantas pessoas da sua cor. Em restaurantes e colégios caros, só para dar dois exemplos, é raro encontrar pessoas negras. Depois da festa, perguntei à babá o que ela achou e sua resposta foi: "Achei muito diferente, Dr. William. As pessoas olhavam para mim!". De fato, quem reparar vai ver quantos ignoram os trabalhadores mais humildes, quando não chegam a destratá-los. Naquele ambiente raro, a jovem experimentou a "não invisibilidade".

E você, leitor? Cumprimenta seu lixeiro? O garçom? A babá da vizinha? O porteiro? Você os vê? Aquele áudio procura você. Se você se julga, ou julga os outros, por quanto ganha, por qual carro tem, ou se não tem um, então o episódio pode revelar esse lado do Boris em seu cotidiano. Melhor que apenas discutir o que fez o Casoy é também questionarmos até que ponto reconhecemos o valor de todo e qualquer trabalho honesto.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Envelhecer (Albert Camus)

Envelhecer é o único meio de viver muito tempo.

A idade madura é aquela na qual ainda se é jovem, porém com muito mais esforço. O que mais me atormenta em relação às tolices de minha juventude,
não é havê-las cometido, mas não poder voltar a cometê-las.

Envelhecer é passar da paixão para a compaixão. Muitas pessoas não chegam aos oitenta porque perdem muito tempo tentando ficar nos quarenta.

Aos vinte anos reina o desejo, aos trinta reina a razão, aos quarenta o juízo.
O que não é belo aos vinte, forte aos trinta, rico aos quarenta, nem sábio aos cinqüenta, nunca será nem belo, nem forte, nem rico, nem sábio...

Quando se passa dos sessenta, são poucas as coisas que nos parecem absurdas.

Os jovens pensam que os velhos são bobos; os velhos sabem que os jovens o são.

A maturidade do homem é voltar a encontrar a serenidade como aquela que se usufruía quando se era menino.

Nada passa mais depressa que os anos. Quando era jovem dizia: “verás quando tiver cinqüenta anos”. Tenho cinqüenta anos e não estou vendo nada.

Nos olhos dos jovens arde a chama, nos olhos dos velhos brilha a luz. A iniciativa da juventude vale tanto quanto a experiência dos velhos. Sempre há um menino em todos os homens.

A cada idade lhe cai bem uma conduta diferente.Os jovens andam em grupo, os adultos em pares e os velhos andam sós.

Feliz é quem foi jovem em sua juventude e feliz é quem foi sábio em sua velhice.

Todos desejamos chegar à velhice e todos negamos que tenhamos chegado.
Não entendo isso dos anos: que, todavia, é bom vivê-los, mas não tê-los.