domingo, 6 de março de 2011

O direito de morrer (Leonardo Boff)

A americana Terri Schiavo está há quinze anos tendo uma existência meramente vegetativa, sem consciência de si, sem poder falar e se alimentar sozinha. A pedido do marido, a justiça norte-americana permitiu que fosse retirado o tubo de alimentação, abrindo o caminho para sua morte lenta e fatal. Tal fato está suscitando no mundo todo muitas discussões que vêm sob o nome de permissão ou não da eutanásia. Já anteriormente, a aprovação da eutanásia pelo parlamento holandês, no ano de 2002, provocara semelhantes debates. Especialmente cristãos católicos têm se mobilizado por entenderem que a vida, sob qualquer forma de sua existência, é sagrada e intocável. Aliviar a morte e com isso praticar a eutanásia, equivaleria a cometer um assassinato. Mas nem todos entendem a eutanásia desta forma. Uma coisa é matar e outra é deixar morrer, respeitando o curso natural das coisas.

A questão, como se depreende, é polêmica e permite múltiplas posições. Queremos apresentar uma das posições, compartilhada por significativo grupo de teólogos cristãos. Embora não goze de unanimidade, representa uma contribuição, digna de ser considerada.

Há de se partir do fato de que a morte pertence à vida. E a vida pertence à eternidade, que é a realização plena das virtualidades da vida. A vida é mortal, por sua própria natureza, não como consequência do pecado das origens. Este não teria introduzido a morte, pois ela estava já ai nas plantas, nos animais e na comunidade de vida dentro da qual se encontra o ser humano. O que o pecado original poderia ter trazido seria um tipo de morte. A morte vivida como angústia e recusa de sua aceitação como algo natural, inerente ao processo de vida que, lentamente, vai gastando seu capital energético-vital até morrer. Na verdade, desde que começamos a existir, estamos sempre morrendo, devagarinho, em prestações até acabar de morrer. Aceitar este dado primário ajuda a entender e a aceitar certas opções.

Como somos responsáveis pela nossa vida, assim também devemos ser responsáveis pela nossa morte. Temos direito a uma vida digna e também o direito a uma morte digna. Esse direito muitas vezes nos é negado pelo fato de sermos obrigados a ficar atrelados a aparelhos e a medicamentos que nos prolongam a vida no sentido meramente vegetativo, o que é insuficiente para a integralidade da vida minimamente humana.

A vida como auto-organização da complexidade da matéria comparece como o fruto mais elevado da evolução e, numa perspectiva espiritual, representa o maior dom de Deus. Mesmo assim, como seres éticos, somos responsáveis pelo começo da vida e também responsáveis pelo fim da vida.

Outrora, as igrejas relutavam em acolher o planejamento familiar, pois imaginavam, erroneamente, que seria interferir no desígnio de Deus de pôr vidas no mundo. Hoje, as mesmas igrejas aconselham o planejamento familiar responsável. Ensinam, outrossim, que todo ser humano tem o direito de morrer humanamente. Cabe ao próprio ser humano, mortalmente doente, decidir de forma qualificada sobre o prolongamento ou não de seu estado irreversível. Na sua impossibilidade, ocupam o seu lugar, o marido, como no caso de Terri Schiavo, e os médicos.

Isso implica que o médico fará tudo para curar o paciente e proporcionar os remédios para aliviar-lhe a dor. Não significa que deva recorrer a tratamentos extraordinários para prolongar a vida ou postergar a morte, sobretudo, em situações limite. Uma terapia só tem sentido quado se ordena à reabilitação e à restituição das funções essenciais e vitais e não simplesmente a garantir uma vida vegetativa, sem perspectiva de reversão do quadro. Então, seria lícito "deixar morrer", o que não é a mesma coisa que "fazer morrer". O "deixar morrer" não exclui remédios que aliviam a dor, mesmo que tenham como consequência não intencionada, a aceleração do processo de morte.

O cuidado pelo doente não deve ser apenas coisa dos médicos e enfermeiros, mas também dos familiares, dos conselheiros espirituais (sacerdotes, pastores, rabinos, pais ou mães de santo etc.) e dos amigos próximos.

Deve ser sempre respeitado o sentido que o paciente dá à vida e à morte. Caso contrário lhe fazemos violência, sempre, entretanto, no pressuposto de que a vida é o bem supremo em nome do qual nenhuma visão, ideologia ou convicção religiosa contrária, possa prevalecer.

Para o cristianismo – a religião da maioria do povo brasileiro – a morte não é um fim, mas um peregrinar para Deus. Não é um diluir-se na poeira cósmica, mas um cair nos braços do Pai e Mãe de infinita bondade. Estamos sempre progressivamente nascendo e com a morte acabamos de nascer. Destarte, a morte perde seu caráter de brutal interrupção do ciclo da vida para se transfigurar numa passagem bem aventurada para a plenitude da vida em Deus.

Morrer é, então, fechar os olhos para ver melhor, como escreveu José Marti, o maior dos cubanos: ver o sentido do universo e o nosso lugar no conjunto dos seres, carregados pelo Mistério de ternura no qual mergulharemos todos.

Tais visões ajudam a humanizar a morte e a desdramatizar os casos terminais como o de Terri. Pois não vivemos para morrer, como dizem os existencialistas, mas morremos para ressuscitar, para viver mais e melhor, como testemunham os cristãos, especialmente. Nestes dias, ao celebrar o domingo de Páscoa.