domingo, 26 de agosto de 2007

Ode ao humanismo (Emir Sader)

Agora que o Papa se foi, é boa hora para nos perguntarmos de novo o que significa ser religioso. Quando alguém nos dirige a pergunta, do ponto de vista de alguma religião – Você crê em Deus? – e respondemos que não, automaticamente procuram nos caracterizar como "ateus", com uma conotação negativa, como a do que "não crê", a do "não-crente"; uma ausência, quase um defeito, uma carência. Opondo o religioso ao "descrente". Quase nos olham com pena, com lástima, com piedade, como se olhassem para alguém condenado ao pecado, ao limbo, como a alguém que não conhecesse Deus – ou deus –, que duvidasse de sua inquestionável existência, alguém incapaz de conhecer e gozar das maravilhas da fé, incapaz de ter fé – de onde se pode deduzir: um infiel.

Mas é disso que se trata? O oposto do crente é o sem fé? Crer é somente crer em algum deus? Ser fiel é ser fiel a um deus? Ou, ao contrário, ser religioso, crer em deus – qualquer que ele seja – é não crer no homem (e na mulher), é descrer do homem, é ter a deus e não ao homem como centro do mundo? Em outras palavras, religioso se opõe a humanista e não a infiel, porque significa deslocar o centro do mundo para um outro plano ou ser, que nos criaria e definiria nosso destino e o sentido mesmo das coisas. Daí a interpretação também de qualquer forma de escritura, de texto bíblico, ser revelado ao homem por um ente superior e não ser construído pelo homem.

O que se deixa de lado, ao identificar crença com fidelidade, é o caráter alienado das visões religiosas do mundo e do próprio ato de crer em algum deus. É negar o principio fundamental do humanismo, que dá sentido à história dos homens e das mulheres: o de que os homens fazem sua própria história, mesmo quando não têm consciência disso.

Necessitado de transcendência, o homem cria e recria a religião e seus deuses, seres perfeitos, imortais, referências de valores, extraindo isso de si mesmo, para depois inverter a relação e passar, de criador a criatura, tornando-se dependente e alienado. Esse é o mecanismo pelo qual o humanismo explica a religião.

O homem livre, emancipado, não precisa de deuses, de religião, de fetiches. Ele sabe que a história é feita pelos homens conscientes, desalienados, por meio do seu trabalho. Sabe que a religião é a uma falsa consciência, que aliena o homem, ao invés de dar-lhe consciência.

Um religioso – por exemplo, católico – imputa a deus o que é produto da ação dos homens. Se fosse coerente, um católico deveria ser contra o divórcio, o aborto, os contraceptivos (inclusive os preservativos), ser a favor do celibato, do direito de apenas homens serem sacerdotes, da infalibilidade papal, da proibição dos experimentos científicos com células-tronco etc. Deveria, além disso, obedecer rigidamente a disciplina de uma instituição retrógrada, medieval, obscurantista, como a Igreja Católica.

Felizmente não o fazem, mas isto demonstra que as teses humanistas se chocam com a religião católica. Quem é a igreja católica, instituição totalmente hierárquica e antidemocrática, para dizer que governo é democrático, ditatorial ou autoritário? O que essa igreja e os seus fiéis tem a dizer da sua própria instituição?

É muito positivo que tantos religiosos extraiam valores humanistas da religião para criticar o capitalismo, a exploração, a opressão. Mas isso não permite elevar a religião a cânone de interpretação da realidade dos homens, de sua história, de suas identidades. Esta só é possível com a crítica radical de toda forma de alienação, da qual as distintas formas de religião são as principais expressões.

O respeito pela religião dos outros não deve impedir a crítica das visões religiosas do mundo, do deslocamento que elas produzem do homem como centro do mundo para deuses e outras formas de fetiches.

O humanista se rege por valores éticos, por uma interpretação histórica da vida dos homens e das mulheres, faz a crítica de toda forma de alienação, luta pela emancipação integral dos homens e das mulheres, luta por um presente e um futuro em que não se necessite de entidades supraterrestres para explicar o mundo, mas em que o mundo seja construído transparentemente pelos homens. Que seja, portanto, inteligível para todos, pleno de sentido humano.

Mitos e verdades sobre o ateísmo (Sam Harris)

O termo "ateísmo" tornou-se tão estigmatizado nos EUA que ser ateu virou total impedimento para uma carreira política, por exemplo. Segundo pesquisa da revista Newsweek, apenas 37% dos americanos votariam num ateu para presidente. É normal nos EUA, onde 87% da população diz "nunca duvidar" da existência de Deus e imagina que ateus são intolerantes, imorais e cegos para a beleza da natureza. Em vista disso, é importante derrubar mitos. Este artigo foi publicado originalmente no jornal Los Angeles Times.

IGNORÂNCIA DOS BENEFÍCIOS
Diz-se que os ateus ignoram o fato de que a religião é benéfica para a sociedade. Os que sublinham isso parecem nunca perceber que tais efeitos não conseguem demonstrar a verdade de nenhuma doutrina religiosa. Além disso, na maioria dos casos, parece que a religião dá às pessoas más razões para se comportar bem. O que é mais moral: ajudar os pobres por se preocupar com seu sofrimento ou ajuda-los por acreditar que o Criador quer que você o faça e o recompensará por fazê-lo ou o punirá por não fazê-lo?

SEM BASE MORAL
Alegam que o ateísmo não oferece base para a moralidade. Se uma pessoa ainda não entendeu que a crueldade é errada, não descobrirá isso lendo a Bíblia ou o Alcorão – já que esses livros transbordam de celebrações da crueldade, tanto humana quanto divina. Não tiramos nossa moralidade da religião. Decidimos o que é bom recorrendo a instituições morais embutidas em nós e refinadas por milhares de anos de reflexão sobre as causas e possibilidades da felicidade humana.

NÃO VÊEM O SENTIDO DA VIDA
Pelo contrário: são os religiosos que se preocupam freqüentemente com a falta de sentido da vida e imaginam que ela só pode ser redimida pela promessa da felicidade eterna no além. Os ateus tendem a ser bastante seguros quanto ao valor da vida. A vida é imbuída de sentido ao ser vivida de modo real e completo. Nossas relações com aqueles que amamos têm sentido agora; não precisam durar para sempre para tê-lo.

CULPADOS POR CRIMES
As pessoas de fé alegam com freqüência que crimes de Hitler, Stalin e Mao foram produto inevitável da descrença. Mas o problema do fascismo e do comunismo é que são parecidos demais com religiões. Regimes assim são dogmáticos ao extremo e originam cultos à personalidade indistinguíveis da adoração religiosa. Campos de extermínio não são exemplos do que acontece quando os seres humanos rejeitam o dogma religioso; são exemplos de dogmas político, racial e nacionalista.

ARROGÂNCIA
Quando os cientistas não sabem alguma coisa, eles admitem. Na ciência, fingir saber o que não se sabe é falha grave. Mas isso é o sangue vital da religião. Uma das ironias do discurso religioso é a freqüência com que as pessoas de fé se vangloriam de sua humildade e, ao mesmo tempo, alegam saber fatos sobre cosmologia, química e biologia que nenhum cientista conhece. Quando consideram questões sobre a natureza do cosmos, ateus tendem a buscar suas opiniões na ciência. Isso não é arrogância. É honestidade intelectual.

PAPEL NA CIÊNCIA
Há quem diga que o ateísmo não tem ligação com a ciência. Embora seja possível ser um cientista e ainda acreditar em Deus, não há dúvida de que um envolvimento com o pensamento científico tende a corroer, e não a sustentar, a fé. Tomando a população dos EUA como exemplo: quase 90% do público em geral acredita num Deus pessoal; mas 93% dos membros da Academia Nacional de Ciências não acreditam.

FECHADOS À ESPIRITUALIDADE
Nada impede os ateus de experimentarem o amor, o êxtase, o arrebatamento e o temor. O que eles não tendem a fazer são afirmações injustificadas sobre a natureza da realidade com base nessas experiências. Não há dúvida de que alguns cristãos mudaram suas vidas para melhor lendo a Bíblia e rezando. O que isso prova? Prova que certas regras e códigos de conduta podem exercer um efeito profundo sobre a mente humana. Tais experiências positivas dos cristãos sugerem a existência de Deus? Nem remotamente, uma vez que hindus, budistas, muçulmanos – e até mesmo ateus – vivenciaram experiências similares.

NADA ALÉM DA VIDA
Dizem que, para os ateus, não há nada além da vida e do entendimento humano. Mas é óbvio que não entendemos o universo completamente; e é ainda mais óbvio que nem a Bíblia nem o Alcorão refletem nosso melhor entendimento do universo. Não sabemos se há vida complexa em outro lugar do cosmos, mas pode haver. Se houver, esses seres podem ter desenvolvido uma compreensão das leis da natureza que excede a nossa. Os ateus podem considerar essas possibilidades e admitir que, se existem extraterrestres, os conteúdos da Bíblia e do Alcorão serão para eles pouco impressionantes. Do ponto de vista ateísta, as religiões do mundo banalizam a verdadeira beleza e a verdadeira imensidão do universo. Não é preciso aceitar nada com base em provas insuficientes para fazer tal observação.

DOGMATISMO ATEÍSTA
Religiosos afirmam que suas escrituras só poderiam ter sido registradas sob orientação de uma divindade onisciente. Um ateu é simplesmente alguém que considerou esta afirmação, leu os livros e concluiu que ela é absurda. Não é preciso ser dogmático para rejeitar crenças religiosas injustificadas. Como disse o historiador Stephen Henry Roberts (1901-71): "Afirmo que ambos somos ateus. Apenas acredito num deus a menos que você. Quando você entender por que rejeita todos os outros deuses possíveis, entenderá por que rejeito o seu".

domingo, 19 de agosto de 2007

Os sonhos dos adolescentes (Contardo Calligaris)

Se tivesse que comparar os jovens de hoje com os de dez ou vinte anos atrás, resumiria assim: eles sonham pequeno. É curioso, pois, pelo exemplo de pais, parentes e vizinhos, nossos jovens sabem que sua origem não fecha seu destino: sua vida não tem que acontecer necessariamente no lugar onde nasceram, sua profissão não tem que ser a continuação da de seus pais. Pelo acesso a uma proliferação extraordinária de ficções e informações, eles conhecem uma pluralidade inédita de vidas possíveis.

Apesar disso, em regra, os adolescentes e os pré-adolescentes de hoje têm devaneios sobre seu futuro muito parecidos com a vida da gente: eles sonham com um dia-a-dia que, para nós, adultos, não é sonho algum, mas o resultado (mais ou menos resignado) de compromissos e frustrações. Eles são “razoáveis”: seu sonho é um ajuste entre suas aspirações heróico-ecológicas e as “necessidades” concretas (segurança do emprego, plano de saúde e aposentadoria).

Alguém dirá: melhor lidar com adolescentes tranqüilos do que com rebeldes sem causa, não é? Pode ser, mas, seja qual for a qualidade dos professores, a escola desperta interesse quando carrega consigo uma promessa de futuro: estudem para ter uma vida mais próxima de seus sonhos. É bom que a escola não responda apenas à “dura realidade” do mercado de trabalho, mas também (talvez, sobretudo) aos devaneios de seus estudantes; sem isso, qual seria sua promessa? “Estude para se conformar?” Conseqüência: a escola é sempre desinteressante para quem pára de sonhar.

É possível que, por sua própria presença maciça em nossas telas, as ficções tenham perdido sua função essencial e sejam contempladas não como um repertório arrebatador de vidas possíveis, mas como um caleidoscópio para alegrar os olhos, um simples entretenimento. Os heróis percorrem o mundo matando dragões, defendendo causas e encontrando amores solares, mas eles não nos inspiram: eles nos divertem, enquanto, comportadamente, aspiramos a um churrasco no domingo e uma cerveja com os amigos.

É também possível (sem contradizer a hipótese anterior) que os adultos não saibam mais sonhar muito além de seu nariz. Ora, a capacidade de os adolescentes inventarem seu futuro depende dos sonhos aos quais nós renunciamos. Pode ser que, quando eles procuram, nas entrelinhas de nossas falas, as aspirações das quais desistimos, eles se deparem apenas com versões melhoradas da mesma vida acomodada que, mal ou bem, conseguimos arrumar. Cada época tem os adolescentes que merece.

sábado, 11 de agosto de 2007

O homem profano (Huberto Rohden)

O homem profano não sai do plano horizontal, que se apresenta sob inumeráveis formas – dinheiro, política, prazeres, ambição, comércio, indústria, ciência, arte, filantropia, organização social; joga com fatores meramente quantitativos, de superfície, em que ele vê o “real”, e até a própria “Realidade”, e por isso se considera ele um “realista”; real, solidamente real, é para ele tudo que é objetivo, quantitativo, o que se pode ver, ouvir, tanger, pesar, medir, numerar, tudo que tem forma e cor; irreal é para o profano o resto, o mundo da qualidade, não sujeito a tempo e espaço. Mas, como há certas conveniências e convenções que mandam crer nesse mundo da qualidade intangível, tolera o chamado “realista” os “idealismos” dos que se ocupam com essas coisas “irreais”, hasteia a bandeira da fé à fachada do edifício maciço do seu materialismo; e à sombra dessa bandeira do além realiza ele os interesses do aquém.

Se esse homem soubesse que ele é um grande “irrealista”, e que os chamados “idealistas” é que são os genuínos “realistas”!...

A mais decisiva e arrasadora descoberta que um homem pode fazer na vida presente é convencer-se experiencialmente de que o mundo horizontal, objetivo, das quantidades tangíveis, é um mundo feito de outros tantos zeros – ao passo que o mundo vertical, subjetivo, da qualidade, é com o algarismo “1”, que representa um valor autônomo, e possui, além disso, o estranho poder de valorizar os zeros que se colocarem à sua direita: 1.000.000; mas se colocarmos esses mesmos zeros à esquerda do valor autônomo “1”, este vai perdendo parte do seu valor: 000.000.1.

O homem profano é tão míope ou cego que passa a vida inteira colecionando zeros e, quando acumulou milhões desses lindos zeros, pequenos ou grandes, então se julga seguro, embora não desista jamais de aumentar o seu museu de nulidades, por sinal que não crê na sua segurança.

Desistir dessa alucinante política de “zeros” e abraçar a gloriosa sabedoria do grande “Um” – com ou sem zeros – é esse o passo decisivo na vida de todo homem terrestre; e é aqui que está a invisível linha divisória entre as duas humanidades que habitam este globo: a humanidade profana dos insipientes e a humanidade sagrada dos sapientes.

O primeiro passo para essa suprema sapiência é a mística, que consiste na intuição do valor do “1” espiritual e na subseqüente fuga de todos os “000” das materialidades circunjacentes, às quais a sociedade dá incessante caça e em cujo nome são cometidos os maiores crimes.

A parábola da ponte (Henrique Rattner)

A globalização que varre o planeta produziu uma série de paradoxos e incertezas para a maioria das pessoas. Aumentaram a produção e comércio mundial; as distâncias entre países e continentes foram encurtadas pelos vôos a jato que alcançam uma velocidade de 1.000 km por hora. Os meios de comunicação via satélite e computadores permitem transações financeiras instantâneas, tirando enorme vantagem das diferenças de fuso-horário.

Seria de esperar que essas maravilhas tecnológicas, além da aproximação geográfica entre os povos, coincidissem com a difusão de conhecimentos científicos e tecnológicos e, sobretudo, dos padrões de convívio social das sociedades mais abertas, esclarecidas, cooperativas e democráticas.

O panorama da situação real é bem diferente. A globalização acelera, violentamente, os processos de desestruturação das comunidades tradicionais. A industrialização, a expulsão de populações de suas terras e a rápida urbanização nos países, outrora chamados “Terceiro Mundo” e hoje, “Emergentes”, desequilibram e alteram profundamente as relações de homens para homens e dos homens para com a natureza.

A destruição dos laços de solidariedade tradicionais e da estabilidade de famílias e comunidades resulta nas migrações para as cidades, despreparadas política, administrativa e economicamente para absorver as massas de migrantes. Essas ficam encurraladas e segregadas em dezenas de milhares de favelas, sem qualquer perspectiva de romper o “círculo vicioso” da pobreza, ignorância e violência. À medida que indivíduos perdem suas raízes, suas casas, terras, parentes e amigos, cresce o que David Riesman chamou de The Lonely Crowd, A Massa Solitária, que segue como um rebanho de ovelhas seu pastor armado com um cajado, seja ele falso profeta, líder carismático, ou simplesmente demagogo populista, lembrando a obra de Elias Canetti (Massa e Poder). A cada dia, fica mais difícil o indivíduo responder: “quem sou, onde pertenço e qual é meu destino?”

No passado, com relações sociais mais estáveis, seja no regime escravagista ou feudal, os indivíduos nasciam, viviam e morriam dentro de suas comunidades, sua classe e seu credo religioso, fossem eles escravos durante o regime colonial, servos no feudalismo ou operários no sistema capitalista.

As migrações para as grandes cidades destruíram os laços tradicionais de cooperação e solidariedade “mecânica” (segundo E. Durkheim). Esperanças de mobilidade geográfica e social levaram ao abandono do campo, em busca de inserção na economia de mercado, cuja divisão social de trabalho levaria à solidariedade “orgânica” (sempre segundo E. Durkheim). Mas, as cidades, longe de serem lugares de liberdade, se tornam, para muitos dos migrantes, uma armadilha, por falta de acesso a empregos estáveis e serviços de educação e saúde, sobretudo para adolescentes e jovens. Vivendo na miséria, segregados e sem esperança de mobilidade social, os jovens engrossam as fileiras da delinqüência, do narcotráfico, da prostituição e da criminalidade. Concentrada em áreas de extrema pobreza, sem infra-estrutura, educação escolar e serviços de saúde, a vida nas favelas lembra o livro escrito por Jack London, The People of the Abyss – o Povo do Abismo, no início do século passado.

A insegurança e o medo levam também a classe média e as elites a se isolarem e refugiarem atrás de muros e grades, a andarem em carros blindados e a protegerem-se com inúmeros guardas particulares. Mas todas essas medidas não conseguem conter o aumento da violência urbana, particularmente nas metrópoles que se tornaram arenas de conflitos que devoram seus próprios habitantes, lembrando as palavras de Thomas Hobbes – “homo homini lupus”. Confusos, perplexos e perdidos nesse mundo de competição selvagem, é freqüente os indivíduos se interrogarem sobre os rumos da sociedade e de suas vidas.

A falta de perspectiva e a perda dos laços de pertencimento corroem os valores e as instituições tradicionais como pátria, partido, igreja. Esses parecem ignorantes ou descrentes de sua missão civilizatória.

As interrogações sobre o destino e o sentido da vida são próprias da espécie humana desde a Antigüidade. No passado, sacerdotes, filósofos ou governantes tentaram responder a essas perguntas, cujas respostas refletem a rica diversidade cultural da Humanidade.

A Idade da Razão e do Iluminismo, nos séculos XVII e XIX, prometia a emancipação dos indivíduos e, também, o progresso das sociedades. Contudo, perdidos na massa “solitária”, os indivíduos tropeçam, caem e sofrem da angústia existencial, no mundo das incertezas. Os afortunados que conseguem um emprego sofrem do ritmo infernal de trabalho e das exigências cada vez mais duras dos chefes, superiores e executivos que buscam, freneticamente, mais produtividade e competitividade.

Às vezes, os mais “afortunados” entre os deserdados e marginalizados são objeto de um assistencialismo populista que distribui esmolas, como política de “compensação”. Que futuro espera essas populações desenraizadas, desempregadas, desabrigadas e alienadas, nominalmente livres em sociedades de democracia formal? Na realidade crua e nua elas são presas numa malha de relações sociais, em que uma minoria poderosa desemprega, oprime e explora os “de baixo”. As elites econômico-financeiras e políticas usurpam e arrogam-se os direitos de falar e decidir em nome de todos.

Até a OMC – Organização Mundial de Comércio e outras instituições financeiras internacionais, outrora paladinos da liberalização, da abertura dos mercados, em benefício da globalização e de suas “maravilhas” tecnológicas, hoje, admitem que esta pode ser não tão vantajosa para a criação de novos empregos e assim, proporcionar uma qualidade de vida decente para todos, sobretudo nos países pobres e mesmo “emergentes”, nos quais a maioria da população sobrevive vegetando precariamente no setor informal.

As terras, as águas e outras riquezas adquiridas, muitas vezes, ilicitamente, continuam a ser apropriadas e desigualmente distribuídas pelas elites, que ostentam e vivem na opulência, com consumo de luxo e, às vezes, na depravação. Confusos, perplexos e amedrontados pela falta de emprego, pela concentração contínua das indústrias, das terras, das finanças e a destruição impiedosa do meio ambiente, até os membros da classe média se interrogam sobre seu destino e o do mundo. Qual seria a saída do caos, da pobreza e da violência reinantes em nossa sociedade?

Alguns tentam encontrar uma resposta individual, na carreira e na ascensão social. Outros procuram retirar-se, tal como os monges tibetanos e os eremitas seculares, do resto do mundo, praticando a meditação. Outros procuram ingressar nas fileiras da oligarquia reinante, enquanto outros ingressam no submundo do crime de “colarinho branco”, através da corrupção, sonegação de impostos e tributos, até o tráfico e consumo de drogas.

Assim, a busca individual de respostas para os dilemas existenciais é um beco sem saída. Contrariamente à ideologia proclamada e enaltecida pelo regime capitalista, a espécie humana, desde que apareceu no planeta, é gregária, cooperativa e solidária. Para sobreviver, precisamos uns dos outros, para produzir os meios de subsistência e organizar a vida coletiva, na defesa contra desastres naturais e sociais, através do desenvolvimento de uma cultura de cooperação e de paz.

Outrora, os místicos cabalistas, quando pressionados pelos discípulos para explicar o significado da vida e o destino do mundo, costumavam responder com uma parábola: “O mundo todo é uma ponte, uma ponte muito estreita”. De onde ela vem? Não o sabemos. E onde ela nos leva – tampouco sabemos. Mas viver e cumprir a missão existencial significa atravessar a ponte.

Por ser muito estreita, muitos não conseguem subir na ponte e outros caem no abismo ao empreender a longa caminhada, freqüentemente vítimas de conflitos e guerras.

Altas taxas de mortalidade infantil, endemias, epidemias e doenças causadas por subnutrição, ou ingestão de substâncias tóxicas, ceifam a vida de milhões a cada ano. O desamparo e a dispersão devido à migração de famílias são agravadas por desemprego ou subemprego e reduzem, dramaticamente, a expectativa de vida de centenas de milhões de pessoas no mundo.

Para procurarmos, coletivamente, um sentido para nossa vida, devemos, primeiro, definir “que tipo de sociedade queremos?”. Somente quando tivermos visão e clareza sobre os rumos e o significado da vida, poderemos participar da construção de pontes para todos os seres humanos, independentemente de idade, credo religioso, gênero, classe social, raça ou cor. Assim, criaremos um mundo de bem estar, harmônico, justo e solidário para todos.

domingo, 5 de agosto de 2007

A verdadeira dívida externa (Guaicaipuro Cautémoc)

Eu, Guaicaipuro Cautémoc, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos, vim aqui encontrar os que nos encontraram há apenas 500 anos.

O irmão advogado europeu me explica que aqui toda dívida deve ser paga, ainda que para isso se tenha que vender seres humanos ou países inteiros.

Pois bem! Eu também tenho dívidas a cobrar. Consta no arquivo das Índias Ocidentais que entre os anos de 1503 e 1660, chegaram à Europa 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata vindos da minha terra!... Teria sido um saque? Não acredito. Seria pensar que os irmãos cristãos faltaram a seu sétimo mandamento.

Genocídio?... Não. Eu jamais pensaria que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue de seu irmão.

Espoliação?... Seria o mesmo que dizer que o capitalismo deslanchou graças à inundação da Europa pelos metais preciosos arrancados de minha terra!

Vamos considerar que esse ouro e essa prata foram o primeiro de muitos empréstimos amigáveis que fizemos à Europa. Achar que não foi isso seria presumir a existência de crimes de guerra, o que me daria o direito de exigir a devolução dos metais e a cobrar indenização por danos e perdas.

Prefiro crer que nós, índios, fizemos um empréstimo a vocês, europeus.

Ao comemorar o quinto centenário desse empréstimo, nos perguntamos se vocês usaram racional e responsavelmente os fundos que lhes adiantamos.

Lamentamos dizer que não.

Vocês dilapidaram esse dinheiro em armadas invencíveis, terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo. E acabaram ocupados pelas tropas da OTAN.

Vocês foram incapazes de acabar com o capital e deixar de depender das matérias primas e da energia barata que arrancam do terceiro mundo.

Esse quadro deplorável corrobora a afirmação de Milton Friedmann, segundo o qual uma economia não pode depender de subsídios.

Por isso, meus senhores da Europa, eu, Guaicaipuro Cautémoc, me sinto obrigado a cobrar o empréstimo que tão generosamente lhes concedemos há 500 anos. E os juros.

É para seu próprio bem.

Não, não vamos cobrar de vocês as taxas de 20 a 30 por cento de juros que vocês impõem ao terceiro mundo.

Queremos apenas a devolução dos metais preciosos, mais 10 por cento sobre 500 anos.

Lamento dizer, mas a dívida européia para conosco, índios, pesa mais que o planeta Terra!... E vejam que calculamos isso em ouro e prata. Não consideramos o sangue derramado de nossos ancestrais!

Sei que vocês não têm esse dinheiro, porque não souberam gerar riquezas com nosso generoso empréstimo.

Nas há sempre uma saída: entreguem-nos a Europa inteira, como primeira prestação de sua dívida histórica.