domingo, 10 de novembro de 2024

Desconheço quem se recupera de separações e desconfio de gente sem ferida (Maria Ribeiro)

De uns tempos para cá, tenho consolado – com alguma frequência – um amigo recém-separado. Conheço sua dor, tenho intimidade com ela, a respeito, e, por pouco – talvez porque seja esse o trabalho do ator – não a sinto como minha.

 

Desde então, e isso tem dois ou três meses, a questão dos desenlaces – que já experimentei duas vezes – tornou a me comover como tantas vezes me comoveu, como se o tema nunca tivesse me deixado.

 

De fato, não só não conheço quem já tenha se recuperado inteiramente de uma família quebrada (especialmente com filhos), como desconfio seriamente de gente sem ferida. Aliás, desconfio e, foi mal aí, tenho um certo desprezo.

 

A separação dos meus pais, por exemplo, me pega até hoje, com 48 anos de idade. Mesmo com quatro décadas de carimbo no calendário. E me pega em situações que, a princípio, nada tem a ver com amor e desamor.

 

Aliás, talvez seja exatamente essa a grande questão da alegria e da dor nos casamentos e nas separações. Não se trata apenas de romance – o que já é muito. Mas há, sobretudo, o amparo, uma coisa que, com sorte, existe em parte na infância e em filmes de Hollywood.

 

Quando desfiz minha segunda "casa perfeita" (pelo menos era assim que eu pensava, olha que boba), lembro claramente de me sentir incapaz de tudo. Tudo mesmo, coisas simples. Refazer minha carta de motorista, viajar com meus meninos, resolver uma revisão de carro, preencher meu estado civil, dar fim à uma infiltração (é bem verdade que infiltração é um troço quase freudiano – nesse departamento, sigo em pânico).

 

No mais, a vida foi – e vai – se encaixando de uma forma bonita e com novos encontros. Mas é claro que deixar de dividir visões de mundo, ou idas ao supermercado, com quem, de alguma forma, nos espelha, é sim uma perda de si. Porque gostar de alguém é gostar da gente. Gostar de mim naquela equação – e não apenas da pessoa em si.

 

E existem duplas que admito que realmente parecem mesmo construir países. E funcionam como uma espécie de usina de energia (limpa, pelo amor de Deus), ou de reflorestamento. Que melhoram o ar, levantam os amigos, iluminam as paisagens. Casais que têm um match tão forte que é como se o amor nascido daquela junção fosse praticamente uma obra de arte esperando para ser produzida. Independentemente do "para sempre".

 

Para o meu amigo recém-solteiro, portanto, deixo essa visita em forma de palavras, na esperança de ter-lhe feito companhia, apesar dele saber meu endereço. E ainda insisto em uma última ideia: trocas profundas permanecem. E só existem a partir de alguma solidão. Estás, portanto, diante de uma chance, companheiro.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Hipocrisias e ilusões (Bruno Momesso Bertolo)

Nelson Rodrigues descortinava com maestria, em suas obras e crônicas, o véu do falso moralismo e da hipocrisia da sociedade. Não é à toa, portanto, que foi tão criticado. Dá para imaginar o que ele escreveria atualmente? Matéria-prima é farta!

 

Afinal, muitos asseveram que almejam ter ao seu lado pessoas de índole ilibada. Mas, quando um indivíduo com aludida qualidade age eticamente, então é taxado de chato, severo e, pasmem, desumano.

 

Muitos criticam a corrupção, entretanto, quando é veiculada uma notícia de um funcionário que encontrou e devolveu elevada quantia, rotulam-o de trouxa, politicamente correto e afins.

 

As pessoas dizem que anseiam por determinados valores e virtudes, contudo, querem tão-somente alguém que lhes agrade e propicie um sentimento de bem-estar.

 

Preferem um falso elogio a uma crítica verdadeira. Optam pela aparência em detrimento da realidade. Escolhem um fanfarrão divertido e preterem um caráter introspectivo.

 

Neste ponto, farei uma analogia injusta, porém necessária por ser deveras ilustrativa. Sei que se trata de uma arte e, portanto, possui outro propósito, logo, não estou condenando-a.

 

Eis o exemplo: um show de ilusionismo. A platéia sabe que foi enganada, todavia, aplaude e sai satisfeita. Na vida também é assim! A verdade e a realidade são doloridas, difíceis de assimilar e até insuportáveis. Então, a alienação é uma válvula de escape, quiçá um instinto de sobrevivência inconsciente. Representa o caminho mais curto e fácil.

 

Em um mundo repleto de hipocrisias e ilusões, valores e virtudes são artigos ensejadores de conflitos e frustrações, algo que poucos estão dispostos a enfrentar. O importante é parecer feliz.

domingo, 20 de setembro de 2020

Uma camiseta inconveniente (Bruno Momesso Bertolo)

O GP da Toscana, realizado no último domingo, foi inédito: a primeira corrida de Fórmula 1 no circuito de Mugello, o milésimo GP da Ferrari na categoria e o primeiro pódio de Alexander Albon. São os destaques no aspecto meramente desportivo.

 

Houve outro fato, também excepcional e muito mais importante: Lewis Hamilton compareceu ao pódio com uma camiseta preta por cima de seu macacão. Na parte frontal da vestimenta, incomum para a ocasião, havia os dizeres “Prendam os policiais que mataram Breonna Taylor”. No verso de referido traje, continha uma foto de Breonna e a frase “Diga o nome dela”.

 

Pronto! A (desnecessária) polêmica foi instalada, mais veloz até que o hexacampeão (a caminho do hepta). As redes (antis)sociais foram inundadas com comentários sobre o tema. As mídias sociais da Mercedes receberam inúmeras críticas, a maioria alegando que não se deve misturar esportes com política. A empresa alemã rebateu: “Isso não é política. É algo básico, direitos humanos”.

 

Protestos contra o protesto (paradoxo dos paradoxos!) de Hamilton também aportaram nos canais oficiais da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), responsável pelo Mundial de Fórmula 1. Por conseguinte e diante da repercussão, na segunda-feira posterior à corrida foi noticiado que o piloto inglês estava sob investigação da FIA em razão de uma eventual quebra de protocolo (leia-se manifestação de cunho político).

 

O Estatuto da FIA estabelece: “A FIA deve abster-se de manifestar discriminação em razão de raça, cor, gênero, orientação sexual, origem étnica ou social, idioma, religião, opinião filosófica ou política, situação familiar ou deficiência no curso de suas atividades e de tomar qualquer ação a esse respeito".

 

Pois bem!

 

Nesse ponto é necessário indagar:

 

1) Hamilton em algum momento se posicionou utilizando o nome da FIA?

2) Sua manifestação representa opinião política?

 

As respostas a supramencionados questionamentos são negativas, evidentemente. O líder do campeonato apenas aproveitou um momento de visibilidade para realizar seu legítimo direito de expressão para pedir justiça. Algo tão basilar e inerente a todo ser humano com o mínimo de bom senso.

 

Nem se argumente que não é o local apropriado para ativismos. Não só pode como deve ser. Por muito tempo a Fórmula 1 viveu (ainda vive, mas está se transformando) em sua redoma particular, desconexa da realidade política, econômica e social. Realizava GPs na África do Sul do apartheid (apesar do boicote de algumas equipes e pilotos), aliava-se a governos reconhecidamente ditatoriais, aceitava patrocinadores de índole duvidosa e outros absurdos que o dinheiro ignora solenemente.

 

Tanto é assim que, em junho do ano vigente e pouco antes do início da temporada, a Fórmula 1 lançou a campanha “We race as one”, visando à promoção da diversidade e apoiar causas sociais. Todas as equipes utilizam em seus carros o logotipo (um arco-íris) e a hashtag de aludida empreitada.

 

Perante sobredito cenário, como foi possível a instauração dessa investigação contra Lewis Hamilton? Lógica inexiste! Assim como todo preconceito...

 

Os únicos que eventualmente teriam legitimidade para reclamar da camiseta do piloto britânico seriam os patrocinadores da Mercedes, que não tiveram suas marcas expostas. Seria, destarte, um assunto interno.

 

Impossível não trazer a lume a afamada cerimônia do pódio dos 200 metros rasos nas Olimpíadas do México em 1968. Em primeiro e terceiros lugares, 2 atletas estadunidenses negros, Tommie Smith e John Carlos, respectivamente. Durante a execução do hino dos EUA, ambos abaixaram suas cabeças e ergueram o punho cerrado, saudação dos Panteras Negras e um protesto contra o racismo (a efervescência dos conflitos raciais naquela década estava no auge, com a luta pelos direitos civis e assassinatos de líderes do movimento afro). O segundo colocado era Peter Norman, australiano branco que apoiou a atitude de seus adversários de esporte, utilizando um distintivo do Projeto Olímpico para Direitos Humanos, Uma imagem eternizada e amplamente divulgada como símbolo da luta pela igualdade.

 

Todavia e como sói acontecer, existe o lado sombrio – e menos conhecido – dessa história. O gesto dos esportistas negros foi condenado pelo Comitê Olímpico Internacional, a ponto de se cogitar a anulação das medalhas conquistadas (o que felizmente não se concretizou). Ao retornarem aos EUA, Tommie Smith e John Carlos sofreram críticas ferrenhas da mídia estadunidense e, em seguida, auferiram como “recompensa” um ostracismo imposto pelos dirigentes do atletismo nacional.

 

Até Peter Norman suportou retaliações na Austrália (país onde os aborígenes são alvos de racismo), circunstância que prejudicou sua carreira profissional e sua vida particular. Faleceu em 2006 em decorrência de um ataque cardíaco. Em seu funeral, Tommie Smith e John Carlos fizeram um discurso repleto de elogios e ajudaram a carregar o caixão. Em 2012 o Parlamento australiano emitiu um pedido de desculpas póstumas.

 

Mais de 50 anos se passaram e a camiseta de Hamilton ainda foi inconveniente. Por quê? Para quem? É difícil perscrutar a mente humana. Entretanto, em minha singela opinião, o incômodo é outro: presenciar um negro como o atual destaque em uma categoria que sempre foi pautada pelo elitismo e dominada por caucasianos. E mais do que isso. Afinal, até o final desse ano ele será o maior piloto da história da Fórmula 1, sobrepujando quase todos os recordes.

 

Em suma, mais um bastião do racismo cairá. É pouco, porém também significa muito. Outro paradigma será rompido. Vide Jesse Owens nas Olimpíadas, Earl Lloyd na NBA, Doug Williams na NFL, Jackie Robinson na MLB, Carlos Alberto Torres na Copa do Mundo, Arthur Ashe e Serena Williams no Tênis, Tiger Woods no Golfe, Shani Davis nas Olimpíadas de Inverno.

 

É o começo da mudança por um mundo igualitário e, portanto, mais justo. Apesar das reclamações daqueles que ainda não perceberam isso. Incomodam-se com uma camiseta, contudo, não se importam com as iniquidades. Eles também serão superados, como Lewis Hamilton tem feito com os recordes da Fórmula 1.

 

Continuem acelerando, Hamilton e Mercedes! Vocês trocaram o tradicional prateado dos carros, pintando-os de preto e adotando mensagens de combate ao racismo. Vocês levaram a primeira mulher negra (Stephanie Travers) ao pódio no GP da Estíria para receber o troféu dos Construtores. Vocês são diretamente responsáveis pela difusão da diversidade no seio do Automobilismo.

 

Eis a maior vitória que alcançarão: uma contribuição e um legado para as gerações futuras.