O
GP da Toscana, realizado no último domingo, foi inédito: a primeira corrida de
Fórmula 1 no circuito de Mugello, o milésimo GP da Ferrari na categoria e o
primeiro pódio de Alexander Albon. São os destaques no aspecto meramente
desportivo.
Houve
outro fato, também excepcional e muito mais importante: Lewis Hamilton
compareceu ao pódio com uma camiseta preta por cima de seu macacão. Na parte
frontal da vestimenta, incomum para a ocasião, havia os dizeres “Prendam os
policiais que mataram Breonna Taylor”. No verso de referido traje, continha uma
foto de Breonna e a frase “Diga o nome dela”.
Pronto!
A (desnecessária) polêmica foi instalada, mais veloz até que o hexacampeão (a
caminho do hepta). As redes (antis)sociais foram inundadas com comentários
sobre o tema. As mídias sociais da Mercedes receberam inúmeras críticas, a
maioria alegando que não se deve misturar esportes com política. A empresa
alemã rebateu: “Isso não é política. É algo básico, direitos humanos”.
Protestos
contra o protesto (paradoxo dos paradoxos!) de Hamilton também aportaram nos
canais oficiais da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), responsável
pelo Mundial de Fórmula 1. Por conseguinte e diante da repercussão, na
segunda-feira posterior à corrida foi noticiado que o piloto inglês estava sob
investigação da FIA em razão de uma eventual quebra de protocolo (leia-se
manifestação de cunho político).
O
Estatuto da FIA estabelece: “A FIA deve abster-se de manifestar discriminação
em razão de raça, cor, gênero, orientação sexual, origem étnica ou social,
idioma, religião, opinião filosófica ou política, situação familiar ou
deficiência no curso de suas atividades e de tomar qualquer ação a esse
respeito".
Pois
bem!
Nesse
ponto é necessário indagar:
1)
Hamilton em algum momento se posicionou utilizando o nome da FIA?
2)
Sua manifestação representa opinião política?
As
respostas a supramencionados questionamentos são negativas, evidentemente. O
líder do campeonato apenas aproveitou um momento de visibilidade para realizar
seu legítimo direito de expressão para pedir justiça. Algo tão basilar e
inerente a todo ser humano com o mínimo de bom senso.
Nem
se argumente que não é o local apropriado para ativismos. Não só pode como deve
ser. Por muito tempo a Fórmula 1 viveu (ainda vive, mas está se transformando)
em sua redoma particular, desconexa da realidade política, econômica e social.
Realizava GPs na África do Sul do apartheid (apesar do boicote de algumas
equipes e pilotos), aliava-se a governos reconhecidamente ditatoriais, aceitava
patrocinadores de índole duvidosa e outros absurdos que o dinheiro ignora
solenemente.
Tanto
é assim que, em junho do ano vigente e pouco antes do início da temporada, a
Fórmula 1 lançou a campanha “We race as one”, visando à promoção da diversidade
e apoiar causas sociais. Todas as equipes utilizam em seus carros o logotipo
(um arco-íris) e a hashtag de aludida empreitada.
Perante
sobredito cenário, como foi possível a instauração dessa investigação contra
Lewis Hamilton? Lógica inexiste! Assim como todo preconceito...
Os
únicos que eventualmente teriam legitimidade para reclamar da camiseta do
piloto britânico seriam os patrocinadores da Mercedes, que não tiveram suas
marcas expostas. Seria, destarte, um assunto interno.
Impossível
não trazer a lume a afamada cerimônia do pódio dos 200 metros rasos nas
Olimpíadas do México em 1968. Em primeiro e terceiros lugares, 2 atletas
estadunidenses negros, Tommie Smith e John Carlos, respectivamente. Durante a
execução do hino dos EUA, ambos abaixaram suas cabeças e ergueram o punho
cerrado, saudação dos Panteras Negras e um protesto contra o racismo (a
efervescência dos conflitos raciais naquela década estava no auge, com a luta
pelos direitos civis e assassinatos de líderes do movimento afro). O segundo
colocado era Peter Norman, australiano branco que apoiou a atitude de seus
adversários de esporte, utilizando um distintivo do Projeto Olímpico para
Direitos Humanos, Uma imagem eternizada e amplamente divulgada como símbolo da
luta pela igualdade.
Todavia
e como sói acontecer, existe o lado sombrio – e menos conhecido – dessa
história. O gesto dos esportistas negros foi condenado pelo Comitê Olímpico
Internacional, a ponto de se cogitar a anulação das medalhas conquistadas (o
que felizmente não se concretizou). Ao retornarem aos EUA, Tommie Smith e John
Carlos sofreram críticas ferrenhas da mídia estadunidense e, em seguida, auferiram
como “recompensa” um ostracismo imposto pelos dirigentes do atletismo nacional.
Até
Peter Norman suportou retaliações na Austrália (país onde os aborígenes são
alvos de racismo), circunstância que prejudicou sua carreira profissional e sua
vida particular. Faleceu em 2006 em decorrência de um ataque cardíaco. Em seu
funeral, Tommie Smith e John Carlos fizeram um discurso repleto de elogios e
ajudaram a carregar o caixão. Em 2012 o Parlamento australiano emitiu um pedido
de desculpas póstumas.
Mais
de 50 anos se passaram e a camiseta de Hamilton ainda foi inconveniente. Por
quê? Para quem? É difícil perscrutar a mente humana. Entretanto, em minha
singela opinião, o incômodo é outro: presenciar um negro como o atual destaque
em uma categoria que sempre foi pautada pelo elitismo e dominada por
caucasianos. E mais do que isso. Afinal, até o final desse ano ele será o maior
piloto da história da Fórmula 1, sobrepujando quase todos os recordes.
Em
suma, mais um bastião do racismo cairá. É pouco, porém também significa muito.
Outro paradigma será rompido. Vide Jesse Owens nas Olimpíadas, Earl Lloyd na
NBA, Doug Williams na NFL, Jackie Robinson na MLB, Carlos Alberto Torres na
Copa do Mundo, Arthur Ashe e Serena Williams no Tênis, Tiger Woods no Golfe,
Shani Davis nas Olimpíadas de Inverno.
É
o começo da mudança por um mundo igualitário e, portanto, mais justo. Apesar
das reclamações daqueles que ainda não perceberam isso. Incomodam-se com uma camiseta,
contudo, não se importam com as iniquidades. Eles também serão superados, como
Lewis Hamilton tem feito com os recordes da Fórmula 1.
Continuem
acelerando, Hamilton e Mercedes! Vocês trocaram o tradicional prateado dos
carros, pintando-os de preto e adotando mensagens de combate ao racismo. Vocês
levaram a primeira mulher negra (Stephanie Travers) ao pódio no GP da Estíria
para receber o troféu dos Construtores. Vocês são diretamente responsáveis pela
difusão da diversidade no seio do Automobilismo.
Eis
a maior vitória que alcançarão: uma contribuição e um legado para as gerações
futuras.